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Futebol internacional

A vida de Özil está hoje cheia de 😜😎💪, mas vazia de futebol. Porquê?

O Arsenal paga €390 mil por semana a Mesut Özil para o alemão não jogar desde março e o treinador já disse que apenas se deve a "razões futebolísticas". Mas o jogador escreveu nas redes sociais sobre uma minoria muçulmana perseguida na China, foi um dos que se recusou a cortar o salário sem garantias de que o clube mantivesse os postos de trabalho de outros funcionários e ofereceu-se a pagar o ordenado do responsável pela mascote quando, de facto, o Arsenal anunciou o despedimento de 55 pessoas. E agora Özil está num limbo em que é um acérrimo apoiante do clube nas redes sociais, mas não joga, é pintado como o mau da fita e não quer ir embora até terminar o contrato

Diogo Pombo

Richard Heathcote/Getty

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Era intervalo do jogo com o Leicester City e já avisara, cuidado com “o criativo Maddison”, olho nele, mas agora queria “chamar a atenção” para Metehan e desviar o foco para o bebé, precisamente a viver em Leicester, a quem uma raridade pragou a vida com atrofia muscular espinhal, doença que implica a perda progressiva de neurónios. “Vamos ajudá-lo a ser saudável”, escreveu, ação cheia de bondade como de simplicidade, terá bastado uns segundos de atenção ao telemóvel esperto para alcançar os donativos de muita gente.

Nas últimas duas semanas, como em muitas das anteriores, Mesut Özil fermentou-se, enfiou-se num forno de lenha e de lá saiu pão crescido e para toda a obra no Arsenal: é apoiante oficial no Twitter durante os jogos, opinando e pedindo a opinião aos seguidores; faz antevisões ao que esperar dos próximos adversários; mostra trabalho, com vídeos em sessões de treino no ginásio ou no jardim lá de casa; até votações fez para eleger o melhor em campo do clube ou o futuro vencedor das eleições dos EUA.

Özil faz tudo, cheio de emojis à mistura, mas é um todo-fazedor a quem o Arsenal paga quase €390 mil por semana, são mais de €20 milhões ao ano, para só não estar a fazer a coisa para a qual lhe transferem dinheiro para a conta. O alemão não joga futebol desde 7 de março, a derradeira partida antes do primeiro confinamento foi a última em que se viu o jogador mais bem pago do Arsenal, agora ei-lo entretido no Twitter, a ser um fiel apoiante na rede social do passarinho azul. Parece um modelo de jogador-adepto, o sonho de qualquer clube para engajar os adeptos.

Mas, em dezembro, Arsenal sentiu um frio na espinha quando Özil escreveu sobre Uighurs.

Trata-se de uma minoria muçulmana, cujo idioma é turco, perseguida no noroeste da China, na província de Xianjiang, onde o país construiu campos de "reeducação”, reteve cerca de um milhão de Uighurs e pratica, alegadamente, graves violações de direitos humanos. O jogador, alemão mas de origem turca, criticou “os perseguidores que os obrigam a separarem-se da sua religião”.

Quem os persegue são as autoridades chinesas e o dedo não é apontado, apenas, pelo futebolista que ousou pronunciar-se - no mês passado, 39 países-membros das Nações Unidas, incluindo a Alemanha, os EUA, o Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e o Japão, condenaram a atuação do governo de Pequim.

O Arsenal não condenou Özil, antes separou-se dele, fez por se alienar do seu futebolista mais popular, prontamente publicou (no mesmo dia) um comunicado no Weibo, a maior rede social chinesa, no qual se reforçou como uma entidade que “sempre aderiu ao princípio de não se envolver em política” e independente das opiniões do jogador. Porquê? Pelas mesmas razões que, dias depois, levaram a CCTV-5, televisão estatal chinesa, a não transmitir o jogo do Arsenal contra o Manchester City.

Daí para cá, o canhoto dos olhos esbugalhados apenas esteve em 13 jogos do clube, nenhum esta época.

Stuart MacFarlane/Getty

Também não constou no material promocional que o Arsenal enviaria depois para a China, a celebrar o Ano Nono chinês. Mais tarde, quando os encontros do clube voltaram a passar na televisão, os comentadores ter-se-ão recusado a dizer o nome do jogador. A sua imagem foi retirada do jogo Pro Evolution Soccer vendido no país, que não é só um imbróglio para o Arsenal - é também o mercado de onde vem o mair pedaço de lucro da Premier League em relação à venda de direitos de transmissão.

Pode ter tudo a ver com o tal tweet, já escreveu o “The New York Times” que Özil acha que sim. Ou pode ter sido uma granada de neve arremessada pelo jogador, outra absorvida pela avalanche que então já se precipitava sobre ele, para enterrar o alemão não por ter uma voz, mais por aquilo que escolhe vocalizar para os mais de 25 milhões de pessoas que o seguem no Twitter.

Porque o problema, de facto, não será político, seria uma incongruência se o fosse pois o Arsenal nada fez quando, nas últimas legislativas britânicas, Hector Bellerín apoiou o Partido Trabalhista e no Twitter escreveu que era “a hipótese de todos os britânicos influenciarem o seu futuro”, com direito a um “#FuckBoris” dirigido ao primeiro-ministro. O espanhol, um dos capitães do Arsenal, também seria dos principais impulsionadores da iniciativa de apoiar o movimento Black Lives Matter em todos os jogos da Premier League.

O silêncio do Arsenal é seletivo, depende não de causas, mas do que está em causa e não de política, sopra nervoso quando algo pode mexer com parceiros comerciais que são estados musculados pelo autoritarismo, mas permite-se a ter jogadores politizados quando os temas são aceites pela noção comum ocidental.

O problema de Özil não terá sido decidido falar. Foi o tema sobre o qual falou, embora o berbicacho do alemão não venha apenas daí.

Porque o alemão, de facto, continuou a jogar (os tais 13 encontros), a equipa manteve a sua presença canhota em campo e a linguagem corporal mole, que tolda olhares para o que impressiona e não necessariamente para o que faz, Özil a tentar ser o foco inventor de assistências, de receções entre linhas e de tabelas curtas para jogarem com ele e assim a equipa jogar mais, só que não. Foi decaindo na sua presença pouco intensa e agressiva sem bola e, de repente, a pandemia interrompeu o futebol.

Quando a bola regressou, Özil não retornou com ela. O seu nome lá apareceu na convocatória para dois jogos, lá ficaram os seus olhos de garoupa especados na bancada, à espera do nada, encostado na irrelevância. A situação piorou quando, em abril, rumores deram conta que o Arsenal ia ser o primeiro clube da Premier League - seria o único - a cortar o salários dos jogadores em 12.5% durante 12 meses. E o nome do alemão aí voltou.

Recusou-se a aceitar o acordo, mais jogadores houve que o rejeitaram também, mas Özil foi o crucificado nas notícias até decidir falar, em agosto, ao “The Athletic”. Disse que “todos queriam contribuir”, ele até “estaria ok por ter uma fatia maior”, mas houve “questões que ficaram por responder” já que pretendiam “saber para onde iria o dinheiro”. Nesse mesmo mês, o Arsenal respondeu, não respondendo: despediu 55 funcionários e fez o que os jogadores queriam evitar quando aceitaram os cortes.

Meras horas depois, o Arsenal anunciou o gasto de €50 milhões para comprar Thomas Partey ao Atlético de Madrid.

Christopher Lee - UEFA

Um esforço milionário para fazer chegar um jogador, um despedimento conjunto para acabar com a ligação a cerca de 10% dos trabalhadores do clube. Um dos desafortunados foi Jerry Quy, despedido com 27 anos contados a ser o tipo dentro da mascote do clube que animava qualquer jogo caseiro do Arsenal. Sem adeptos no estádio, o clube decidiu livrar-se do salário do Gunnarsaurus e Mesut Özil agiu.

Vendo uma oportunidade para golpear com uma manobra de relações públicas ou, simplesmente, tendo um ato de decência, o alemão voltou a recorrer ao Twitter para se “oferecer a reembolsar o clube com o valor do salário” do homem por trás da mascote enquanto “fosse jogador” do Arsenal. A opinião pública aplaudiu Özil e as ondas de choque negativas das palmas foram para quem toma este tipo de decisões.

A machadada do jogador pintou-o com boas graças nos olhos de quem vê de fora, mas não terá servido para o reaproximar do campo. Ele diz que está feliz em Londres, onde foi pai durante a pandemia e, na prática, é pago para não jogar com um chorudo contrato que renovou em 2018. “As coisas têm sido obviamente difíceis, mas amo o Arsenal, amo trabalhar aqui, amo as pessoas do clube, as pessoas verdadeiras. Sou eu quem decide quando irei embora, não outras pessoas”, explicou, na mesma entrevista ao “The Athletic”.

Tão cedo Özil não aparecerá em campo, porque o Arsenal não o inscreveu na lista de jogadores da Premier League e da Liga Europa. Ou melhor, Mikel Arteta optou por não o ter, a atestar pelas palavras do treinador, que assumiu “toda a responsabilidade” por “não conseguir retirar o melhor” do alemão e negou que tudo tenha a ver com coisas extra futebol - “A decisão é minha”.

Olhando futebolisticamente, os últimos três anos de Mesut Özil foram um mirrar progressivo da sua influência. O organizador de jogo atacante que, em 2015/16, foi eleito o jogador do ano no Arsenal com 19 assistência distribuídas, tem reduzido a sua influência na equipa à medida que o clube foi ficando sem Santi Cazorla, Aaron Ramsey, Alexis Sanchez ou Henrikh Mkhitaryan, tudo jogadores que habitam entre linhas e nutrem um carinho por combinações curtas. Pelo jogo associativo no qual Özil floresce e quem o rodeia beneficia.

As polémicas foram aumentando e o tempo do alemão em campo diminuindo. Unai Emery, que o treinou durante época e meia (até novembro de 2019) disse, ao “Daily Mail”, que “a atitude e os níveis de compromisso” de Özil “não eram suficientes” quando queria acionar um jogo de pressão intensa na equipa. Em 2019, acabou com cinco golos e duas assistências. A época passada, apenas marcou um e deu dois passes para golo.

Mesut Özil já defendeu a sua forma física, garante que trabalha muito, outros asseguram que sempre o fez com afinco e ninguém o vê em campo, nem verá, continuem as coisas assim e os 32 anos de um dos jogadores mais técnicos, criativos e com capacidade para desbravar caminhos em campo da sua geração vão-se manter confinados às redes sociais.

A teclar para mais de 25 milhões de seguidores para desejar “boa sorte às senhoras” quando a equipa feminina do Arsenal jogar; a parabenizar o “irmão” Robert Pirès com quem nunca jogou; a elogiar o “simplesmente melhor avançado defensivo” da história quando Sergio Ramos, seu companheiro nos tempos de Real Madrid, marcar mais um golo.

A vida de Mesut Özil agora é isto.