Com exceção para o futebol que imaginava na cabeça, nada era simples com Johan Cruijff. “A paz parece impossível”, escrevia o El País a 9 de março de 1999, na véspera do jogo de homenagem ao holandês genial. Johan fez daquele evento uma celebração ao Dream Team, que ganhara no início da década quatro ligas e, entre outros troféus, a primeira Taça dos Campeões Europeus do clube e uma Taça das Taças, ambas contra a Sampdoria de Boskov.
O clube catalão, dirigido pelo presidente Nuñez, proibiu o Dream Team de usar símbolo e camisola oficial. Louis van Gaal ia mantendo o mistério se iria ou não sentar-se no banco do Barça, diziam que José Mourinho ia assumir. O problema de Cruijff era outro. “Não me interessa isso. Van Gaal não tem nada a ver com o Dream Team. Preocupa-me que Guardiola, Busquets e companhia joguem connosco 15 minutos.” E companhia eram Sergi e Nadal. Pep não jogaria por ninguém, por uma lesão nas costas. Romário era a outra ausência importante: o Flamengo não autorizou a viagem até à Catalunha.
As 98 mil entradas foram vendidas em tempo recorde. O ontem engolia o hoje. Era tempo de celebrar a equipa mais importante da história, ainda por cima em ano de centenário: 1999.
Os futebolistas do Dream Team foram anunciados um a um. A primeira grande ovação foi para Ronald Koeman, o herói de Wembley. Bakero emocionou-se. Muitos holofotes e miradas abraçavam Michael Laudrup, não só por ter sido brilhante naquele jardim divino mas também porque se mudou para o eterno rival em 94. “Silêncio, começa a última lição do maestro Michael Laudrup. Aos que te assobiaram hoje, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem. A tua memória é impagável”, podia ler-se num cartaz.
Imaginava-se uma receção pouco simpática. Não foi assim. Foi bonito e o dinamarquês ficou com um brilhozinho nos olhos. Corria como ninguém, parecia o mais futebolista dos futebolistas.

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Levavam todos uma vestimenta laranja, igual à de 92, a tal que espremeu os sonhos da turma de Vialli e Mancini. Stoichkov estava aceso, Eusebio Sacristán entrou de muletas. Cruijff, “o mister de todas as batalhas” como dizia o narrador da TV, ficou para o fim. “Johan, Johan”, afinava o deslumbrado Camp Nou.
Quando começou a tocar o hino do Barça entraram finalmente as equipas, chefiadas pelos capitães Figo e Bakero. Van Gaal estava no banco, pouco feliz. Mourinho a duas cadeiras de distância.
A bola saiu dos eternos. Após meros segundos e alguns passes de pé para pé, a lembrança daquela gente viajou para o presente. Ouvia-se “olé, olé”. Eram felizes.
Patrick Kluivert, o craque holandês que deu a Champions ao Ajax em 95, investiu numa barrigada de falhanços. A classe e os pormenores eram imensos. Rivaldo e Figo iam inventando jogadas. O extremo português era impressionante pelo foco que colocava no jogo (nem falemos da qualidade...). Podia ser para a Champions ou contra o Real Madrid, ou até ao berlinde no quintal de casa, aquele olhar era felino. Comprometido.

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As substituições começaram logo aos 15 minutos. Koeman e Txiki Begiristáin saltaram fora. Aloísio, o central do FC Porto que jogou no Barcelona entre 88 e 90, voltava a ser orientado por Cruijff.
O Barça ia mandando no jogo, com mais energia. Os de laranja tinham boas ideias, mas os músculos já não obedecem e a baliza mora num lugar mais distante. Uma vez, Laudrup, génio, furava o meio-campo rival e, ao ver que ninguém acompanhava, voltou para trás. “Falta-lhes Romário”, concluía o narrador. E faltava mesmo.
Antes dos 20 minutos, João Vieira Pinto, o capitão do Benfica, entrou em campo. Camisola 27 e cabelo esvoaçante. Johan disse-lhe para jogar na direita, onde às vezes seria esquecido. Mas a bola não se esquecia dele, à boleia daquelas mudanças de direção atrevidas. O avançado português, talvez por ainda estar no ativo, não recebeu meiguices. Sergi e Cocu molharam a sopa algumas vezes.

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Kluivert tentou marcar de rabona, Aloísio sacou a bola. Stoichkov, já sem Koeman em campo, tentou de livre. Nada. Witschge, futebolista do Ajax, ia enchendo o meio-campo da equipa de Johan. Faltava o cérebro: Pep Guardiola. Figo continuava com aquela cara.
Aos 25’ entraram Eric Cantona, Jorge Campos (a camisola era estranhamente discreta) e Mário Jardel, camisola 21. O avançado do FCP exibia muita pinta: mobilidade, bola colada à sola, disponibilidade, tabelas. Não foi aquele Super Mário de área a voar sobre os centrais.
Tac-tac-tac. João Pinto, Iván de la Peña, Luc Nilis, Jardel e Cantona. Que jogadinha, senhores. Bola para as nuvens, Eric. Au revoir, certo? Jardel depois apareceu isolado, mas Ruud Hesp limpou bem. Jorge Campos encantou o Camp Nou em dois momentos: parou uma bomba de Rivaldo e, a seguir, a segurar a bola com uma mão, a voar. Laudrup sorria no banco.
Kluivert deixou finalmente de ser um avançado qualquer e lembrou-se de quem era. Um-zero: passe sublime de Cocu, Kluivert ultrapassou o elétrico Jorge Campos e encostou para a baliza deserta.

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Os laranjas iam perdendo fulgor, apesar de já haver mais gente no ativo em campo. É que antes havia ideias, uma geometria orientada, um futebol diferente na cabeça dos meninos do Dream Team. Faltavam as pernas. O inverso depois também aconteceu. Witschge e de la Peña iam mantendo a fogueira a arder.
Na segunda parte houve menos qualidade. E pedalada. Van Gaal não sorria por nada deste mundo. Mourinho, com um hábito muito espanhol, ia comendo umas pevides. À falta de futebol de encher o olho, o público empolgou-se com um funcionário que tentava desviar uma faixa que tapava uma publicidade. Um adepto desceu a escadaria, qual soldado contra o futebol moderno, e com brusquidão colocou tudo como antes: “Obrigado, Dream Team”, podia ler-se. Palmas.

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Os duelos e associações improváveis, como uma tabela espetacular entre Cantona e Jardel, iam maravilhando. João Pinto voltou a entrar em campo para o lugar do esgotado e fantasmagórico Cantona.
"Atenção, Jardel vai isolar-se". Porrada de Mauricio Pellegrino. Noutro qualquer jogo teria levado vermelho direto. O avançado brasileiro sairia lesionado. O que estaria a pensar Fernando Santos em casa, tranquilo da vida, no Porto? É que havia jogo contra o União de Leiria três dias depois. Ficaria tudo bem. Jardel e Aloísio, quem sabe inspirados por Johan, marcariam um golinho cada um nas Antas (3-1). João Pinto teria sorte desigual: Benfica perderia em casa com o Boavista por 3-0.
Cruijff, de 51 anos, ia trocando ideias com os adjuntos Carles Rexach e Bruins Slot, que seria adjunto de Koeman no Benfica. O 2-0 sairia da canhota de Giovanni, com um chapelaço ao adiantado Campos.
Apesar desse pedaço de magia, os adeptos cantavam “Dream Team, Dream Team”. O coração dos culés nunca esteve dividido naquela noite mágica, que aconteceu há exatamente 20 anos.
Busquets, que viu João Pinto fazer um nó aos rins de Zenden, fez uma bela defesa ao remate do português. O guarda-redes, que não foi autorizado a jogar pelo Dream Team, saiu pouco depois, ovacionado. Van Gaal continuava a vestir aquela cara de poucos amigos. Mourinho sorria.
Depois de Zenden chutar ao poste, João Pinto fez um passe espectacular para Jardel, que não conseguiu desviar para a baliza. Estava aqui o laboratório para o que aconteceria uns tempos depois: as estrelas de FC Porto e Benfica jogariam juntas em Alvalade. Caminhamos para o fim da homenagem, que era de Johan mas que Johan a transformou em tributo ao Dream Team.
Laudrup, “o senhor do futebol”, Stoichkov e Koeman acabariam o jogo no relvado, morada onde nunca deixarão de pertencer. O jogo ganhou interesse e as linhas de passe voltaram a cantar, bêbedas de alegria. Apito final, 2-0. Abraços, sorrisos e aplausos. Os forasteiros, que na verdade eram mais da casa do que os da casa, deram então uma volta ao relvado, agradecendo a adoração. O povo, saciado, apreciou de pé.
“Johan, Johan”. Bakero puxou Cruijff para o coração do relvado, o lugar que nunca lhe falhou, e os jogadores colocaram-se no círculo do meio-campo. Cruijff agradeceu pela “noite fantástica” e pediu que tocassem só mais uma vez o hino do Futbol Club Barcelona.