O Mundial da Austrália e Nova Zelândia, que decorrerá de 20 de julho a 20 de agosto, será novo ponto alto no crescimento e consolidação do futebol feminino. Depois dos marcos importantes que foram a última edição da competição, em França, em 2019, e o Europeu de 2022, em Inglaterra e cheio de recordes, o torneio na Oceânia promete voltar a subir a fasquia em atenção mediática, receitas e audiências.
No entanto, a consolidação das principais provas internacionais surge num momento em que muitas das mais importantes jogadoras do mundo estão em conflito aberto com as respetivas federações. No Canadá, no Japão, em Espanha ou em França há estrelas de palmarés recheado a exigirem mudanças, seja na profissionalização de estruturas ou equiparação de pagamentos.
Depois da gala do “The Best”, em que voltou a ser considerada pela FIFA a melhor jogadora do mundo, a espanhola Alexia Putellas disse que, “ultimamente”, têm “aparecido certos problemas em vários países”, não sendo “algo de uma seleção em concreto”, mas “uma coisa a nível global”. A catalã, que se encontra no processo de recuperação de uma grave lesão no joelho, apelou a que “instituições e jogadoras se juntem, se oiçam e vejam o que é melhor para o futebol”.
É, justamente, do país da craque do Barcelona que vem um dos casos mais graves.
“O conflito das 15”
A bomba rebentou em setembro: quinze internacionais espanholas renunciaram, simultaneamente, à seleção, em protesto contra a continuidade do técnico Jorge Vilda. Entre as queixas das jogadoras estavam, segundo informou a “Marca”, os treinos “monótonos e repetitivos”, com “pouca exigência e baixa qualidade”, a “pouca experiência de Vilda” antes de chegar à seleção — somente treinou o Canillas antes de entrar na Federação em 2010, pela mão do pai, então técnico das sub-19 de Espanha —, a “má preparação e estudo” das adversárias, a “falta de empatia ou auto-crítica” do treinador ou a “falta de respeito pelos tempos de recuperação” de lesões, forçando as atletas a voltarem aos relvados antes dos prazos de recuperação.
Aitana Bonmatí é uma das 15
Mike Hewitt/Getty
O “grupo das 15” é formado por Patri Guijarro, Claudia Pina, Aitana Bonmatí, Mapi León, Sandra Paños, Mariona Caldentey, Ainhoa Vicente, Amaiur Sarriegi, Leila Ouahabi, Lucía García, Ona Batlle, Laia Aleixandri, Lola Gallardo, Nerea Eizagirre e Andrea Pereira. As seis primeiras jogam no Barcelona, tricampeão espanhol.
Nos últimos dois Europeus, Espanha foi eliminada nos quartos de final, e no Mundial 2019 caiu nos ‘oitavos’. No entanto, o discurso de Vilda antes do torneio do passado verão em Inglaterra, baixando as expetativas, assentou mal às jogadoras, que também acusam o técnico de “ditar o discurso” que elas devem ter.
Segundo a “Marca” há, também, críticas à Federação, acusada de ter uma aposta “artificial e residual” no futebol feminino. Quando as 15 anunciaram o abandono, Megan Rapinoe, estrela da seleção dos Estados Unidos da América e Bola de Ouro em 2019, recorreu ao Instagram para manifestar apoio: “Têm uma 16.ª jogadora de pé, junto a vocês, nos EUA”, escreveu a campeã do mundo.
Em fevereiro, depois de uma convocatória para um torneio na Austrália em que nenhuma das 15 marcou presença, Jorge Vilda disse que, “se o Mundial fosse amanhã”, iria “com estas” ao torneio. O técnico disse que as jogadoras que chamou “cumprem com o esperado em internacionais”, que é “compromisso com a camisola, expetativa máxima e respeito pelos valores da seleção”. Questionado sobre o possível regresso das 15, disse “não depender” de si, mas estar “aberto ao diálogo”.
Os abandonos de Wendie Renard, Katoto e Diani em França
“Amo França mais do que tudo. Não sou perfeita, longe disso, mas não consigo mais aguentar o sistema atual, que está longe dos requisitos do mais alto nível”. Esta foi uma das frases fortes do comunicado com que Wendie Renard, até agora capitã da seleção francesa, anunciou a sua renúncia à equipa nacional.
A central do Lyon, de 32 anos e 71 vezes internacional, é uma das principais jogadoras do planeta. Com 15 campeonatos vencidos em França e oito Ligas dos Campeões, a defesa não estará no Mundial, o que é “triste”, mas “necessário para preservar a saúde mental” da jogadora.

Wendie Renard
Robbie Jay Barratt - AMA
Renard comunicou a renúncia com o “coração pesado” e “em sofrimento”. De acordo com a “RMC Sport”, a central não voltará a atuar pela seleção enquanto Corinne Diacre for a treinadora. A técnica tirou a Renard a braçadeira de capitã depois do Euro 2017, devolvendo-a em 2021. Diacre foi, no passado, criticada por outras jogadoras, como Gaëtane Thiney e Sarah Bouhaddi.
Logo após a defesa do Lyon, também Marie-Antoinette Katoto e Kadidiatou Diani, ambas avançadas do PSG, seguiram pelo mesmo caminho, anunciando a renúncia à seleção. Em comunicado, Diani explicou que, devido aos “recentes resultados e gestão da equipa”, iria “suspender as obrigações internacionais”, ainda que garantindo que, “caso as mudanças necessárias fossem feitas”, regressará.
Alex Morgan e Megan Rapinoe mostraram a sua solidariedade com as francesas. Rapinoe escreveu, no Instagram, que tinha “imenso respeito” pelas três, enquanto Morgan, no Twitter, garantiu que “o coração doía” ao ver o sucedido com Renard, Katoto e Diani.
Em resposta às jogadoras, a Federação Francesa de Futebol disse ter “tomado nota” das “declarações” do trio, “lembrando que nenhuma individualidade está acima da instituição que é a seleção”.
No Canadá, o conflito é no feminino e no masculino
Mais antigos são os problemas no soccer do Canadá. Já nos anos 80 e 90 havia disputas dos atletas com a Federação. Em novembro, Mike Sweeney, membro da seleção que estreou o Canadá em Mundiais em 1986, recordou à Tribuna Expresso o historial de “sub-financiamento” do futebol no país, ele que chegou a ameaçar não comparecer a um jogo decisivo de apuramento para o Mundial 1994.
Em junho de 2022, os jogadores da seleção masculina recusaram jogar contra o Panamá num protesto contra a Federação e em defesa da luta por melhores condições feita pela equipa feminina.
Em fevereiro, Christine Sinclair, capitã da seleção feminina, anunciou que a equipa iria fazer greve, em protesto devido a cortes de financiamento, falta de transparência ou falta de igualdade de pagamento, numa decisão prontamente apoiada pela equipa masculina. No entanto, as campeãs olímpicas em título desmarcaram a greve devido à ameaça, feita pela Federação, de ir para os tribunais, com Sinclair a dizer que as jogadoras “não poderiam tomar os riscos” associados à greve.
Mas as futebolistas fizeram mesmo um protesto. Em Orlando, num jogo contra os EUA, as jogadoras do Canadá vestiram camisolas com a frase “enough is enough” ("já chega"), num gesto de revolta contra a Federação. A iniciativa foi apoiada pela equipa dos EUA, que se juntou às adversárias num abraço no campo antes do jogo, que foi vencido pelas anfitriãs por 2-0. Megan Rapinoe disse que as imagens vistas na Flórida serão “muito poderosas daqui para a frente”.
Antes do desafio contra os EUA, Jessie Fleming, média do Canadá, detalhou as razões do protesto: “má gestão financeira”, “falta de transparência” e “desigualdade de género”, já que nos últimos dois anos “houve discrepâncias significativas no financiamento das seleções feminina e masculina".
Na sequência do falhanço nas negociações da Federação com as jogadoras e jogadores, Nick Bontis, presidente da entidade, demitiu-se a 27 de fevereiro, reconhecendo que “era preciso uma mudança para alcançar paz com ambas as seleções”. Apesar desta saída, Bontis acabou de ser nomeado para vice-presidente para a América do Norte da Concacaf, a confederação para o futebol da América do Norte, Central e Caraíbas, num mandato de quatro anos que englobará o Mundial 2026 no Canadá, EUA e México — o primeiro da história que será diretamente organizado pela FIFA, sem qualquer comité organizador local.
Esta sexta-feira, a federação canadiana anunciou que assinou um princípio de acordo com as futebolistas que prevê um pacote “similar” de prémios de jogo, compensações e incentivos financeiros.
Em 2023, a Federação fez cortes no financiamento das seleções masculina e feminina, pelo que os atletas de ambos os conjuntos pediram acesso às contas da entidade. A equipa feminina exige ter o mesmo apoio no Mundial da Austrália e Nova Zelândia que a masculina teve no Catar.
O caso de Yuki Nagasato
Em 2011, o Japão foi campeão do mundo no torneio realizado em casa. Yuki Nagasato fez seis jogos e apontou um golo, consolidando um estatuto que a fez estar com a seleção nos Jogos Olímpicos de 2012, na Taça da Ásia em 2014, também conquistada pelo país do sol nascente, e no Mundial de 2015. No entanto, em 2016, Nagasato decidiu dizer adeus à seleção.
Yuki Nagasato
Joe Robbins/ISI Photos
Na altura, a jogadora não revelou a verdade por detrás da decisão, mas agora, num texto em forma de desabafo, a futebolista dos Chicago Red Stars contou o sucedido. Nagasato abandonou a decisão por “não ter mais energia e motivação para continuar a tentar fazer da equipa nacional um lugar melhor para o futuro”, sentindo que “não era um sítio onde devesse estar”.
O principal motivo de desagrado prendia-se com “não ver as jogadoras tratadas como profissionais pela equipa técnica”, algo que se via “dentro e fora de campo”. “Não havia a avaliação correta das jogadoras. Havia faltas de respeito para com seres humanos. Os padrões não estavam à altura de uma seleção. Essa falta de profissionalismo deixou-me exausta”, comentou a jogadora que, além dos EUA, já atuou na Austrália, Alemanha e Inglaterra.
Nagasato “entendeu”, depois, que aquela “era a forma como a Federação queria tratar as futebolistas”. “Mantive-me calada durante sete anos. Mas não quero continuar calada. Notei que o silêncio não resolve problemas. Quero que a seleção tenha o ambiente mais profissional possível e que seja atrativa para que as crianças e as gerações mais novas olhem para ela”.
Do Japão ao Canadá, de França a Espanha, há uma geração de jogadoras que quer que o futebol feminino deixe de andar a várias velocidades, com a profissionalização de uma parte do jogo a não ser acompanhada por zonas onde as velhas carências estruturais persistem.