Miguel Afonso foi suspenso pelo Futebol Clube de Famalicão e pela Federação Portuguesa de Futebol (FPF), após diversas acusações de assédio sexual nos tempos em que treinava o Rio Ave. O substituto como treinador da equipa feminina dos minhotos, segundo os relatos de várias vítimas ao “Público”, traz com ele um conjunto de acusações: assédio psicológico, racismo e xenofobia.
Tudo terá acontecido na época passada, quando Marco Ramos orientava o Atlético Ouriense. Depois de ter visto o seu antigo técnico ser absolvido em setembro deste ano, Victoria Markovicz Gerard resolveu contar a sua versão dos factos. Em 2021/22, foi contratada pelo Ouriense ao A-dos-Francos e, no final dessa época, a brasileira de então 26 anos foi de férias ao seu país. Quando regressou, tinha um novo treinador.
Algumas jogadoras tinham ingressado no clube com o técnico Marco Ramos. “Em conversa, elas avisaram-me de que ele não tinha muito respeito pelas jogadoras, nem cuidado com as palavras que usava”, conta Victoria ao mesmo jornal, acrescentando o que viu nos primeiros dias de trabalho: “Tratava as jogadoras muito mal de um modo geral, com muita falta de educação, rispidez e grosseria”.
Com o tempo, o treinador terá começado “a discriminar em particular as brasileiras e outras jogadoras também em função da cor da pele”. Segundo a antiga jogadora, forçada a abandonar a modalidades pelos efeitos do assédio que sofreu ao serviço do Ouriense, Marco Ramos utilizava expressões como “macaco”, “aquela brasileira do caralho”, “aquela preta” ou “tinham de ser essas merdas das brasileiras”. O “Público” confirmou a utilização da linguagem ofensiva junto de outra jogadora.
A 30 de dezembro de 2021, após a denúncia de Victoria, o Conselho Disciplinar da FPF instaurou um processo de averiguações. Em maio deste ano, o organismo decidiu que existiam “indícios suficientes da prática de infrações disciplinares” e, a 22 de julho, acusou o clube, o técnico Marco Ramos e Tânia Pereira de Sá, diretora do Ouriense.
A defesa de Ramos foi negando sempre as alegações. Particularmente no caso de Victoria, o técnico deu a sua garantia de que esta “nunca foi exposta” a expressões verbais agressivas. A defesa do treinador disse que Ramos nunca usou sequer “os impropérios” de que era acusado, “nem ofendeu a dignidade de qualquer agente desportivo”.
O atual técnico do Famalicão acabaria por ser absolvido por falta de provas, a 16 de setembro de 2022. Mas Paula (nome fictício) confirmou agora o que a ex-colega afirmou e justificou o silêncio prévio: “Na altura, não tive condições para denunciar [Marco Ramos]. Ao “Público”, garante ter testemunhado e sido vítima da linguagem do técnico, tanto que acabou por pedir para deixar o clube.
“Pedi para sair, para me desligar do clube pela forma como o Marco tratava toda a gente. Era precisamente o oposto daquilo que um treinador deveria ser na vida de uma atleta, ainda mais estrangeira”, declarou a compatriota de Victoria, que, tal como a colega, acabou por ter de abandonar o futebol, embora temporariamente, no seu caso.
Fernanda Peinado, outra das jogadoras brasileiras do Ouriense de então, atualmente em Malta, confirma as versões das antigas companheiras. “Ouvi o treinador Marco Ramos dizer por inúmeras vezes “tinha de ser brasileira”, conta a futebolista, que admite que o técnico lhe chamou “burra”. “Uma coisa que me traumatizou foi ele chutar tudo o que via à frente (garrafas, coletes, bolas), sendo muito agressivo”, desabafou, considerando que Ramos era “desequilibrado” e não deveria ser treinador “numa liga principal”.
Ouvidas as vítimas e as testemunhas, o CD considerou então as provas insuficientes. Contra Victoria, Paula ou Fernanda, jogaram as declarações de vários elementos da equipa técnica, bem como da jogadora Raíza Silva, também ela brasileira e de pele negra, que negaram a versão das acusadoras. Victoria garante que outras atletas se calaram com receio de represálias.
Conhecidas as deliberações do CD, apenas o Ouriense foi condenado por “incumprimento do dever de cuidado” referido no Artigo 65-A do Regulamento Disciplinar da FPF. A sanção teve a ver com outras questões, que não os insultos proferidos por Marco Ramos. Ao chegar a Portugal, Victoria esperava ganhar 450 euros por mês, com direito a alojamento, alimentação e internet. Rapidamente soube, através de um funcionário do clube, que iria apenas receber 350 euros, sem alimentação e internet. Mais tarde, o presidente do Ouriense tê-la-á informado de que apenas lhe poderiam pagar 150 euros por mês.
A sugestão, que Victoria se viu obrigada a aceitar, foi trabalhar na lavandaria e na limpeza dos balneários do clube, por 250 euros mensais. “Disseram-me que, ou aceitava estas condições, ou tinha de ir embora”, contou Victoria, que tinha como colega de trabalho outra companheira de equipa. Nenhuma delas tinha folgas.
“Perdi a minha estabilidade emocional e tive mesmo ideias suicidas”, confessou a ex-jogadora, que optou por fechar-se em casa e foi obrigada a recorrer à psicoterapia. “Ainda estou a enfrentar uma depressão por causa de tudo isto”, admite.