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Expresso

“Ganhar prestígio e subir escalões através dos miúdos é terrorismo”: entrevista a Óscar Cano, o treinador que foi falar a Alcochete e Seixal

O ponto de partida da conversa com este treinador, dirigente e formador, de 49 anos e natural de Granada, era perceber porque foi convidado para dar palestras às equipas técnicas das academias de Sporting e Benfica. Ao longo de quase uma hora, Óscar Cano faz uma reflexão profunda, por vezes filosófica, sobre o futebol de hoje, assente na construção e desconstrução de conceitos, denunciando ainda erros e virtudes nas camadas jovens: "Vamos aprender que o erro é o nascimento do conhecimento, de novas possibilidades de intervenção"

Hugo Tavares da Silva

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Porque o convidaram para falar nas academias de Benfica e Sporting?
Tanto o Benfica como o Sporting estão, e parece-me bem, a dar muita importância à formação dos seus treinadores. Então, imagino que, com o surgimento do jogo de posição, procurem pessoas que tenham investigado sobre o tema, que tenham colocado em prática este tipo de futebol. Imagino que seja por aí os convites. A verdade é que me surpreende, em primeiro lugar, e depois gosto. Não foi só com eles, estive também no Veneza e no Barcelona. Encontro sempre este tipo de surpresas de clubes grandes que se abrem, que têm uma visão e abertura em relação à realidade e a novas formas de ver o futebol, metodologia. Isso para mim é muito positivo.

Tem muito mais a ver com tática do que com liderança ou conceitos, então. É direcionado para o jogo de posição.
Sim, é sobre o jogo de posição e a sua metodologia. Não me parece correto separar os fatores que incidem no rendimento porque dentro da metodologia de um treinador, dentro das formas de proceder, está também implícita a liderança. Não podem estar separados. Quando ensinas atividades para jogar de uma determinada maneira, quando desenvolves o dia a dia no treino, na própria direção do treino, exerces de uma forma ou outra a liderança.

A que tipo de perguntas gosta de responder?
Eles perguntam sobre tudo. Chamo à atenção que os conceitos do jogo de posição, que a própria definição deste tipo de jogo e de toda a ideia que marca este tipo de futebol, têm a sua procedência nos jogadores. Não sou capaz de falar de futebol sem falar de jogadores. Para mim, o jogo de posição é o Iniesta e a partir daí podemos começar a falar. Sou um grande crente de que é impossível jogar a algo sem que esse algo esteja entre as condições e capacidades dos jogadores. Não pode ser de outra maneira. De facto, muitos treinadores, a grande maioria, agora falam nisso, de conceitos, de posicionamento, de métodos, de objetivos... sem terem em conta aqueles que vão permitir que isso se possa fazer. Não acredito neste pós-futebol que só fala de espaços a ocupar, de estruturas. Fala-se muito pouco do que é a realidade do futebol, que são as interações entre jogadores que podem tornar possível jogar de uma ou outra maneira e sobretudo vistas a partir de uma perspetiva dinâmica, no? Porque também há muita mentira em relação a isso. As pessoas fotografam uma imagem e fazem umas série de luzes, setas e tal, para mim o futebol não é isso.

Como se pode descrever o jogo de posição?
Para descrever o futebol de posição há que falar de jogadores, não se pode fazer de outra maneira. Não se encontra uma definição nem uma conceptualização de jogo de posição porque o conceito também é o jogador, o método é o jogador, o treino é o jogador. Um treino, uma ideia, um conceito não dizem nada se não são eles. O que posso garantir, porque o vivi, é o que aporta esta maneira nova de ver o futebol, através de gente como Juanma Lillo, Paco Seirul-lo, o diretor de metodologia do Barça, Pep Guardiola e muitos treinadores, tal como outros menos conhecidos. E o que posso dizer é que o emergir deste tipo de futebol tem a ver com a crença de que o talento marca a diferença. Mudou o paradigma do qual se constrói o conhecimento, é muito mais complexo, muito mais natural com o que é a vida e o futebol, onde a incerteza tem um papel determinante. Ensinou-nos que o futebol não pode ser pregado, que não é mecânico, que não há automatismos, é sim um futebol jogado. É um futebol que está sujeito às relações entre os jogadores que o jogam. Isso, sim, foi-nos aportada esta maneira de sentir o jogo, sobretudo que o talento e a complementaridade são o que marca a diferença.

Para definir o jogo de posição só me saem nomes próprios: Busquets, Iniesta, Modric, Benzema. Há muito jogo de posição noutros clubes que não são o Barcelona. Parece que só existe ali e não, há equipas que antes estavam distantes dessa ideia, como o Liverpool, que têm muitos conceitos deste tipo de futebol, pois ali jogam um tal de Van Dijk, Alexander-Arnold, Thiago, Salah, Mané... Em definitivo, são eles que colocam a definição das coisas. Falei com um treinador dos sub-14 ou sub-15 do Barcelona e disse-lhe que, nos últimos três anos, que eu tenha visto, não há um futebol melhor nem mais estético, nem mais natural e espontâneo do que o que fez o Real Madrid na segunda parte em Sevilha. Eu falo de Carlo Ancelotti e de jogo de posição e parecem elementos que se contradizem, certo? Não é assim.

O jogo parece mais dos jogadores no Real Madrid.
Creio que é a grande responsabilidade do treinador, não sei porque não se admira esse futebol. O treinador tem uma doença que se chama ego, vale? Parece que os treinadores que mecanizam, cujas equipas têm um jogo reconhecível, são dos que se gostam mais. São os que menos gosto. Numa conferência para uma empresa daqui de Espanha disse que o grande desafio do treinador é otimizar a espontaneidade. Ou seja, gosto de equipas que jogam de maneira espontânea. Ultimamente, vejo muitos movimentos de jogadores de futebol que não têm timing e correspondência com os demais, isto é, é um futebol mecânico, de treinador, é um futebol artificial. Não é um futebol natural. Temos a obrigação, como treinadores, de que haja um futebol que tenha a ver com as capacidades espontâneas dos jogadores. Acredito que isso pode ser feito. Há uma coisa que me seduz muito e que estou a pensar fazer se me derem a oportunidade num grande clube, senão não tem sentido, que é dirigir a metodologia nesse sentido. Não me importava de estar fora dos bancos dois ou três anos para demonstrar que, através de determinada metodologia — e os donos dos clubes até ganhariam mais dinheiro —, o jogador teria uma mais-valia derivada de otimizar essa espontaneidade e criatividade.

D.R.

Falou no passado sobre essa robotização do futebol. O jogador perdeu protagonismo? Muitas vezes somos culpados também, dizendo o Barça de Guardiola, é sempre a equipa do treinador. Mas parece que vivemos, em alguns casos, uma ditadura da organização e rigor, ou não? Os jogos são parecidos.
Sim, vês um jogo e parecem-se todos. Gostei do termo que usaste. É uma ditadura, uma ditadura do treinador, na ânsia de prestigiar a sua condição. O prestígio da condição do treinador, na atualidade, confronta-se com o que é a realidade e a verdade do futebol. Nós — e não diz o Óscar Cano, dizem os neurocientistas — temos neurónios e esses neurónios têm uma característica que é a plasticidade. Isto é, não são rígidos, admitem essa plasticidade. Através dessa plasticidade, somos seres que não somos unívocos, somos abertos à experiência e aprendizagem. É absurdo tratar o jogador como um robô. O ser humano é complexo e há um monte de fatores que influenciam a formação da sua identidade. Somos sobretudo seres plurais. Não tem muito sentido o treino que vai contra o que estou a dizer.

Uma coisa muito curiosa: uma percentagem baixíssima dos golos e de oportunidades de golos surgem desses procedimentos mecânicos. O que tanto destacam e é tão óbvio, e por isso as pessoas notam, também é óbvio para as equipas que têm de defender. O Manchester City, Liverpool e Barcelona dependem de algo que não está no guião, é assim que se provocam os golos. É o valor que têm Benzema, Modric, Phil Foden, o vosso compatriota Bernardo Silva, Pedri, Sadio Mané, Mo Salah, Thiago... É através de sair do guião que se dá todo o perigo. Que curioso! É certo que determinada estrutura e posicionamento facilitam que os jogadores possam expressar as suas capacidades, mas não é pelo lugar. Temos de falar de nomes próprios, não é pela posição, é sobre quem está lá e quem está à volta. Ou seja, com quem vou interagir para que isso possa acontecer? Essa é outra: acreditamos que os jogadores têm umas capacidades que se podem expressar independentemente da forma de interagir. Eu acredito que, se eu tenho uma capacidade e tu tens outra, essa capacidade num ambiente social, como é o futebol, só pode emergir e sobressair no contacto com o outro, porque é um desporto coletivo. O jogador por si só não tem nenhum valor. Tudo o que sabe fazer expressa-se ao juntar-se com outros jogadores que permitem que ele se expresse assim.

Ocorreu-me uma conversa de Julio Velasco com o selecionador de basquetebol da Argentina: ele notou que os jogadores às vezes acreditam que a ordem e a organização inibem o talento. Ele acha que é ao contrário.
Devemos redefinir o que é ordem e organização. O intercâmbio de posições que vimos outro dia no Real Madrid-Sevilha é de jogadores que não olham para o banco, que não olham para o treinador, estão a fluir, a jogar. Tenho um filho de 17 anos e já sabes que têm um vocabulário distinto do nosso, mas há uma palavra que me fascina: flow. Aí está o futebol, no flow. Quando vês uma equipa a fluir, que não se detém, que ninguém pensa onde tem de estar, que ninguém está a pensar, mas sim a sentir, estão a jogar... isso é imparável. Isso é ordem. O caos, ou o aparente caos, é uma forma sublime de ordem. O que acontece é que se reduziu a ordem ao que podemos controlar, e isso é distinto: isso não é ordem, é controlo. Uma coisa é a organização de um conjunto de jogadores, que é uma organização em si; a ordem está sempre, sempre marcada por algo que não se pode medir, que não se pode atestar, que se intui, que se sente. É algo que a ciência não pode definir, é o flow. Quando estou a treinar, a minha grande preocupação é misturar os jogadores até encontrar esse flow que me permite ser menos treinador, não dar tantas instruções, não ser tão invasivo no dia a dia. Afinal, o treinador converteu-se, infelizmente, numa pessoa que oferece e emite informação. E o treino não é isso, não é isso o futebol. Estamos a comunicar: eu através da palavra, porque não posso jogar, e eles através da conduta e comportamento.

Voltando ao futebol de formação. Os meninos entram muito cedo nas escolas de futebol e nas academias dos clubes, não jogam na rua e pouco ou nada na escola: o pior que lhes pode acontecer é apanhar um treinador com pressa e que quer ser demasiado treinador?
Sim. Ganhar prestígio e subir escalões através dos miúdos é terrorismo. Eliminou-se o fator rua. É curioso, cada vez há menos talento porque não há rua... Vamos recordar o que era a rua: eram duas equipas sem regras, escolhiam os jogadores, não havia uma entidade externa, um treinador neste caso, que definisse como iam jogar ali. De maneira contundente, dava-se algo inerente ao ser vivo e às organizações: a autoformação e autoconfiguração. Isto é, não precisavam de ninguém para configurar as relações. Através de jogar, e com o passar do tempo, organizavam-se, e de forma muito inteligente, baseando-se no onde e com quem seriam capazes de oferecer as melhores prestações. Lembra-te: na baliza tínhamos o menos capaz para jogar ou o mais capacitado para ser guarda-redes; colocávamos sempre os melhores nos lugares mais determinantes; todos os que eram dribladores, de maneira natural e sem que ninguém o indicasse, jogavam por fora, pois por ali havia menos concentração de jogadores. Quanto às escolas de futebol, um dos aspetos que eu trabalharia, se tivesse uma oportunidade um dia, era haver jogo livre numa percentagem do tempo. Quando digo jogo livre é o treinador simplesmente estar presente. Que joguem eles, que se organizem eles, que falem eles, que ponham eles as regras. Estou muito convencido que, com essa forma de proceder, eles vão ensinar-nos como temos de organizar o que temos de organizar. Não há nenhuma ferramenta mais poderosa, ou que ofereça uma melhor informação para o treinador, do que ver os seus jogadores jogarem de maneira livre.

Fiz essa pergunta porque já vi um treinador parar um treino para dizer a um menino de 10 anos para onde devia passar a bola. Ou um treinador que não permitia dominar a bola com a sola. A liberdade e a criatividade estão em perigo? Não estamos a criar gente com medo de jogar como sabe?
Totalmente, totalmente. Além disso, esse tipo de treinadores têm todos um denominador comum: é gente complexada ou, enquanto miúdos, não lhes foi permitido serem felizes e livres. São treinadores que não compreendem que a liberdade é o que permite ser responsável. Só sendo livres podemos reconhecer a liberdade no outro, vincular as liberdades. Só sendo livres podemos expressar-nos tal e qual como somos. A partir daí, podemos determinar se a minha capacidade e as tuas se podem complementar e de que forma, para jogarmos futebol da melhor maneira. Isto é, sem liberdade não há reconhecimento do outro, não há admiração pelo companheiro.

D.R.

Olha, eu tenho uma grande amizade com o Xavi Hernández, foi provocada no Catar quando ele jogava no Al-Sadd e me pediu para fazer parte do staff da seleção sub-19, que eu dirigia. Para mim, foi uma honra. Bom, nas muitas das conversas que tivemos, o que mais me impactou, muito e muitíssimo, além de futebol e conceitos, era a admiração com que falava dos seus companheiros. Essa admiração, evidentemente, tem a ver com relações de alta qualidade. No futebol, as relações de alta qualidade não se dão nos churrascos nem nas concentrações, dão-se na relva. Para que eu possa extrair o que melhor sei fazer, necessito de aquilo que tu melhor sabes fazer, resulta desse reconhecimento. Ele era absolutamente consciente da importância que tinha Busquets para o seu futebol. Era consciente da necessidade de os colegas se movimentarem bem para ele poder manifestar essas altas qualidades no passe. Definitivamente, é disso que se trata, só se pode fazê-lo se o jogador for livre. Como é que se pode conhecer uma pessoa se não atua de maneira livre, se não atua livre de pressão? É impossível conhecê-la. E, a partir desse conhecimento, provoca-se algo nas equipas que é maravilhoso: os jogadores começam a admirar-se entre eles, começam a ver a correspondência que há entre as capacidades de uns e as de outros. Começam a ver quão necessários são os outros para que eu possa fazer o que sei fazer. Estamos a falar de valores! Tudo isto tem uma capa mais profunda, são os valores, como a responsabilidade, a empatia, que é colocar-me no lugar do outro porque compreendo o outro e sei que ele é vital para mim e vice-versa, e a solidariedade na hora de jogar. Todos estes valores são tão importantes na sociedade e, claro, numa equipa de futebol.

Mesmo na escola, quando não sabemos nada da vida, ganha-se o respeito de acordo com o tipo de jogador que o outro é.
Os mais talentosos, os criativos, saltam da equação e são retirados pelo treinador porque contêm a tal criatividade que está muito por cima da pizarra [quadro tático]. Então, o que quer o treinador é que a equipa seja reconhecível, que seja a equipa de Óscar Cano, que seja a equipa de Pep Guardiola, que seja de autor. No limite, podes identificar o que pode ocorrer e dar espaços de expressão, ou seja, treinar e criar contextos de oportunidade, oferecer oportunidade através dos teus exercícios e treinos para o que há se possa expressar.

Teme que jogadores como Recoba ou Riquelme vão perdendo espaço neste futebol?
Sou dos que dizem que existem muitos Pedris. Muitos! No mundo há muitos, parece que são jogadores únicos, e são porque chegam poucos à elite, mas há muitos. Em qualquer aldeia, cidade, parque, há um Pedri em potência, um Riquelme em potência. O que é preciso começar a reconhecer é que esse talento tão esmagador é uma forma de ordem superior. Isto é, as equipas deveriam ordenar-se e organizar-se através deste tipo de jogadores que enriquecem os demais. São jogadores que permitem que os outros descubram determinado talento que nem sabiam que tinham. Vocês têm um jogador sublime que é o Bernardo Silva: num jogador de 1.70 m e 70 kg há tal ordem que permite que o De Bruyne se expresse melhor, que o João Cancelo se expresse melhor, que o Mahrez se expresse melhor, que o Sterling se expresse melhor... Vimos um Barcelona com Pedri e sem Pedri, sou dos que dizem que, quando o Pedri joga, os jogadores medíocres parecem bons. Contêm, aglutinam e geram tais dinâmicas com a sua presença, pausa e compreensão de todos, que se vão ordenando e encontrando o seu lugar. Estes jogadores parecem-me fascinantes, permitem que os outros sejam melhores.

Mas não teme que percam o seu espaço?
Estão a perder protagonismo porque eles não se sujeitam às regras que estão pré-estabelecidas. São almas livres. Benditas almas livres, no? Curiosamente, deixamo-las no banco e rapidamente já as queremos quando estamos a perder um jogo. É curioso.

Há pouco falava no futebol de autor. Numa entrevista de Nagelsmann ou talvez Tuchel, um deles dizia que os próprios jogadores pedem mais respostas. Estamos a formar gente com menos capacidade para resolver problemas ou é uma evolução natural?
É o establishment. Quando escutas gente como Xavi Hernández a dizer que lhe ensinaram a jogar futebol, fomos tão inteligentes e macabros, os treinadores, que estamos a fazer ver ao jogador que lhe ensinámos a jogar futebol. Isso é terrorismo de alto gabarito. Estamos a educar o jogador numa direção que não é a correta, insistindo ao ponto de os fazer crer que nós temos as respostas. O jogador pede respostas porque há uma educação que não é a correta, o jogador tem de reaprender e começar a reconhecer e a saber que as respostas e as ferramentas têm eles, nós não jogamos. Quanto muito podemos dizer-lhes que sabem fazer algo que nós intuímos que sabem fazer, mas são eles que sabem fazê-lo, o conhecimento é deles. Somos detetores de conhecimento, quem sabe jogar é o futebolista. O plano [de jogo] é tão macabro, tão absurdo e terrorista, que a mim, dá-me pena e tenho vontade de chorar quando acaba um jogo. Entrevistam um jogador e ele fala como se fosse o treinador, dizendo frases de treinador. E os treinadores estão a alucinar com eles, para eles é maravilhoso, 'vejam o que sabe de futebol'. Para mim é horrível, é horrível. O jogador não tem de saber verbalizar o jogo, tem de saber jogá-lo.

D.R.

Há não muito tempo disse que o desastre não tem fim, que estão a aparecer especialidades que atentam contra o futebol, que está tudo pior. De que falava?
Isto não tem fim porque não é esgrima. Porque não é luta livre. Porque não é um desporto minoritário que não gera dinheiro e paixão. O dinheiro e o negócio estão na paixão das pessoas. Estamos a falar de algo que vai muito além do futebol. Agora mesmo o que se impõe, por desgraça, é o ideológico: parece que toda a gente tem de ter uma ideologia. Não, eu tenho uma identidade, é distinto. A minha identidade permite-me ir crescendo e abandonando ideias em função do meu rendimento e experiência. "A minha ideologia é querer/gostar antes de ver"... isso é um perigo! O ideológico é ser de um partido político, aferrar-me a ele e lutar contra tudo o que não se pareça com o que gosto ou acredito, e cometemos uma injustiça porque são paradigmas fechados. A ideologia fecha o que é naturalmente aberto, que é a nossa mente, condiciona num sentido, numa direção. Evidentemente, aqui há uma paixão, o que interessa é que as pessoas sejam do Sporting ou do Benfica ou do Porto, do Real ou do Barcelona, e que defendam até à morte as suas cores e ideias. Isso gera paixão, sentimento, pouco senso comum e, quando há pouco senso comum, começa o negócio. Então, como há muito negócio e o futebol gera um volume económico espetacular, começa a entrar gente que não tem nada a ver com futebol e que se apodera do futebol. Intermediários e representantes ganham mais dinheiro do que muitos treinadores e jogadores, sem jogarem. Especialistas de todo o tipo. Aparece a ciência e trata de dizer aos donos, aos que têm dinheiro, que há uma forma de controlar o jogo, de medir o jogo, quando é absolutamente falso. Eu acredito na ciência, claro que acredito na ciência, mas naquela ciência que tem em conta a incerteza.

Ontem tive uma discussão com um amigo e ele dizia-me que o número de lesões, que se multiplicou, tem a ver com um fator chamado stress: "O jogador joga muito". E eu digo que não, o jogador treina mal e ao contrário do que é o jogo. O jogador não treina o jogo, então, quando vai jogar, a sua motricidade está treinada ao contrário do que tem de fazer depois no jogo. Se fosse uma questão de acumulação de fadiga, os jogadores lesionar-se-iam em maio, não em setembro ou outubro, quando levam seis jornadas e já há 10 lesionados. Não. Há tantos especialistas nas equipas técnicas, que têm de trabalhar a sua parte. E o jogador começa no ginásio, vai ao campo, faz nova sessão de ginásio, depois vai a uma readaptação... está sete horas a treinar. Em muitos casos, através de contrações musculares — porque o metem nas máquinas e com ferramentas e utensílios que não aparecem nos jogos — que não são contrações naturais do jogo, mas do jogador.

Tratam de equilibrar o que naturalmente é desequilibrado. Eu sou desequilibrado, tu és desequilibrado. Tratar de homogeneizar a minha estrutura corporal, muscular e articular é fazer-me propenso a lesões. Sou como sou e joguei sempre tendo em conta as minhas imperfeições, adaptei o meu corpo a elas e jogo com elas. Garrincha tinha uma perna mais curta que a outra! Onde, sim, acredito na ciência: esses desequilíbrios são os que te lesionam. Se está provado que te lesionam, tem de haver um programa preventivo, obviamente, mas são sessões de força. É curioso, o Pedri leva três lesões consecutivas de mais de quatro semanas de duração. Curiosamente, começou a lesionar-se quando estava a fazer um programa de mus-cu-la-ção. Estão a mudar a sua configuração natural e, evidentemente, lesiona-se. Agora lesiona-se, antes não se lesionava e jogava tão bem como agora. Não se joga bem porque és mais forte, mais rápido ou mais débil.

Pedri jogou prolongamentos e 70 e tal jogos sem acontecer nada.
Sem acontecer nada, mas, como havia que o melhorar, lesionaram-no. Não sei o que havia para melhorar…

D.R.

Que outras coisas o aborrecem no futebol?
A presença de pessoas que estão a fazer negócio com uma série de ferramentas. A última moda é o big data. Agora, a nova moda é brain data, querem medir o que está a pensar o jogador. É tão absurdo que, às vezes, penso que é uma piada. Outro dia mostraram-me uma imagem em que aparecia a expetativa de golos [expected goals, xG] que tinha um jogador que estava num determinado ponto da área, virado para a baliza de uma determinada maneira, e davam-lhe 33% de probabilidade de êxito. E eu digo: é o mesmo que esteja eu aí ou o Messi? Temos a mesma probabilidade de êxito? Em que é que está marcada a probabilidade de êxito? Outra vez, no talento. Outro dia, um jogador do Leganés, da 2.ª Divisão, controlou a bola no minuto 93 e, sem ângulo, sacou uma bola que deu a vitória à sua equipa. Se tivermos em conta o big data, os especialistas não lhe recomendariam aquele remate — "não remates porque a probabilidade é muito baixa". Ganharam o jogo assim. É o que mais me aborrece, estão a desnaturalizar o jogo a bem da modernidade, com a aparição de uma ciência que não tem em conta as características do jogo, que são as características de quem joga o jogo, o ser humano, e portanto estão a converter isto em algo que não tem muito sentido.

Que outras ferramentas deveria ter um treinador? O que devia estudar para se preparar?
A grande ferramenta é olhar para o jogador, não há mais. Compreender que a essência é o ser humano, saber que somos seres sociais, que somos interdependentes, isto é, que dependemos do outro e o outro depende de nós, que é assim que se constroem os padrões, os famosos padrões de organização que falam as pessoas e que têm que ver com a configuração das relações, que é o como e onde estamos, isso vai fazer com que emerja um tipo de futebol ou outro. Acredito que a grande aprendizagem e o grande desafio do treinador está, no meu ponto de vista, em mudar o paradigma do qual observa e constrói o conhecimento, que surge da observação e desses processos reflexivos, tanto conscientes como não conscientes. Aí está a grande ferramenta. Sou um treinador diferente, sou uma pessoa diferente, desde que Paco Seiru-lo me recomendou ler livros de [Fritjof] Capra.

Creio que o treinador tem de ler muito, muito de tudo o que tem a ver com o sistémico e complexo porque, a partir daí, vai compreender como está tudo interrelacionado, como tudo está interconectado, como somos todos seres interdependentes, como somos seres sociais, como realmente a incerteza impacta, como impacta no jogo. Como a incerteza deixou de ser um fator que vai contra a ordem, é o que permite que haja ordem, vai-nos permitir ter abertura à novidade, vai ensinar-nos algo que é muito, muito importante saber: quando, no jogo, há um curto-circuito, quando o oponente não te deixa fazer o que tu tinhas pensado fazer, longe de o ver como uma arma, essa equipa não é só o teu inimigo, mas o teu colaborador, porque está a permitir que tu te possas expressar de outra maneira. Isto é, fecha-te uma porta, mas abre-te outra realidade. Vamos aprender que o erro é o nascimento do conhecimento, de novas possibilidades de intervenção. Acredito, sinceramente, que se tivesse de recomendar uma coisa aos treinadores, tanto aos que estão a começar como aos que levam muitos anos, é ler autores como Edgar Morin e Fritjof Capra, que dedicaram grande parte da sua vida a mostrar-nos como são os organismos vivos, como são as sociedades e isso vai contribuir para que mudemos o paradigma tradicional por um paradigma muito mais perto do que é a realidade do dia a dia, do futebol e dos jogadores.