Tem nome de thriller, mas o “Quarto da Mente” foi uma criação de um homem para apaziguar as almas e fortalecer a mente dos jogadores. Que o digam Franco Baresi, Roberto Donadoni ou Roberto Baggio, nomes indissociáveis de uma época dourada do clube de San Siro. Ao mesmo tempo, os três foram vítimas de traumas depois de falharem grandes penalidades decisivas ao serviço da seleção italiana, nos Mundiais de 1990 e 1994.
De acordo com uma investigação conduzida pela "BBC", as três lendas do calcio buscaram conforto no “Quarto da Mente”, o primeiro laboratório de psicologia do futebol transalpino. Criado com o apoio do então presidente do AC Milan, Silvio Berlusconi, elogiado por uma sucessão de treinadores, de Arrigo Sacchi a Carlo Ancelotti, terá ajudado o clube a vencer 21 troféus nos 23 anos em que esteve operacional.
Em fevereiro de 1986, um futuro primeiro-ministro de Itália que acabara de comprar o clube e um campeão amador de karaté encontraram-se para conversar. O Dr. Bruno Demichelis estudava as artes marciais desde adolescente. Em 1971, com 24 anos, foi derrotado por um oponente japonês, aparentemente mais fraco. Voltou para casa a processar o desaire e a procurar respostas.
“Não tinha sido um problema técnico ou físico. Eu estava em forma e bem treinado. Um amigo meu disse-me: ‘É um problema mental?’”, recordou Demichelis num programa de televisão, em 2020. “Apercebi-me de que tinha treinado com japoneses durante tanto tempo que eles já não eram apenas instrutores ou mestres para mim; eram os meus heróis. Psicologicamente, não consegues derrotar os teus heróis. Era autossabotagem”, explicou o criador do “Quarto da Mente”.
Depois de se doutorar em psicologia, Demichelis começou a trabalhar numa empresa de Silvio Berlusconi. Quando o patrão comprou o AC Milan, o futuro cúmplice dos jogadores do clube pressentiu uma oportunidade e conseguiu marcar uma reunião com o novo dono dos milaneses.
Com o consentimento de Berlusconi, Bruno Demichelis instalou-se e começou a combinar terapia de alívio do stress com treino cognitivo e neurociência. O impacto do laboratório viria a ser sentido em muitos outros clubes.
Com sentido de humor, o primeiro psicólogo da Série A, agora com 74 anos, lembra o encontro com Silvio Berlusconi: “Ele perguntou-me se eu era adepto do Milan. Eu disse que não. Lembro-me de vê-lo a recuar. Depois perguntou-me se eu apoiava o Inter. Eu disse que não e ele foi ainda mais para trás. Antes que me fizesse uma terceira pergunta, eu disse-lhe que não era adepto de nenhuma equipa”.

Bruno Demichelis, no Chelsea, para onde Carlo Ancelotti o levou quando foi contratado pelo clube inglês, em 2009.
Matthew Impey - EMPICS
Segundo a "BBC", o “Quarto da Mente” funcionava como santuário e como sala de treino. Grupos de oito jogadores eram sentados em inovadoras cadeiras de gravidade zero e ligados a equipamento como polígrafos. Um dos mais regulares visitantes do laboratório era Clarence Seedorf. O neerlandês tinha uma devoção pelo autodesenvolvimento e isso viria a valer-lhe um prolongamento do contrato, porque Demichelis lhe dissera que ele tinha uma idade mental mais baixa do que a real.
Com a chegada de Carlo Ancelotti ao comando técnico do clube, em 2001, Bruno Demichelis ganhou um novo fã.
O atual treinador do Real Madrid dizia aos jogadores: “Vocês não jogam futebol com os pés; vocês jogam com o vosso cérebro”. A admiração pelo “Quarto da Mente” era tanta que, com a saída de Ancelotti, em 2009, o projeto deixou o centro de treinos do AC Milan e instalou-se em Stamford Bridge, onde treinador e cientista reforçaram o Chelsea.
Em 2014, com Seedorf no comando técnico do AC Milan, Demichelis regressou a casa. O reencontro entre o antigo jogador e o psicólogo durou pouco tempo, uma vez que o neerlandês ficou apenas quatro meses no cargo, mas a herança do “Quarto da Mente” parece perdurar no tempo.
Uma das frases ditas por Bruno Demichelis resume o propósito do projeto que criou no AC Milan e abriu a porta ao trabalho a nível mental e psicológico que, hoje, é comum em clubes de futebol: "Não podes treinar um jogador de 37 anos para ficar fisicamente mais rápido, mas podes treiná-lo para ser mais rápido a analisar situações".