As lágrimas de Zinchenko, que só pede “que a guerra pare”: “Imagina o sítio onde nasceste, onde cresceste, e agora é só chão vazio”
Zinchenko, com uma camisola com a bandeira da Ucrânia e a mensagem “Nâo à guerra”, antes do Everton – City da passada jornada da Premier League
Numa entrevista à BBC, conduzida por Gary Lineker, o internacional ucraniano apelou, emocionado, ao fim do conflito no seu país. O jogador do Manchester City agradeceu todas as mensagens de apoio, avisou que “as pessoas estão a morrer à fome e a dormir debaixo do chão” e assegurou “conhecer a mentalidade” dos seus compatriotas: “Preferem morrer — e vão morrer —, mas não vão desistir”
Poucos jogadores de elite conseguem, quando se retiram, perder o rótulo de “ex-futebolista”. O peso do que se fez dentro de campo é, normalmente, tanto que aquilo que se possa fazer depois é, muitas vezes, ofuscado pelo legado deixado. Seria normal que o melhor marcador de um Mundial, três vezes melhor marcador da liga inglesa, terceiro melhor marcador da história da seleção de Sua Majestade e dianteiro com várias dezenas de golos ao serviço de Leicester, Everton, Barcelona e Tottenham tivesse dificuldade em descolar-se do rótulo de antigo jogador.
No entanto, Gary Lineker conseguiu fazê-lo. Depois de ter sido um dos melhores avançados europeus dos anos 80, o inglês trocou as botas pelos microfones e é uma das mais conhecidas caras da televisão britânica. E foi o prestígio, sensatez e humanidade de Lineker que levou a que Oleksandr Zinchenko quisesse sentar-se, diante das câmaras da BBC, para falar sobre a guerra que assola o seu país.
Internacional ucraniano em 48 ocasiões, o jogador do Manchester City assegura que “a maioria” da sua família “está em locais seguros”, mas que “nunca se sabe o que vai acontecer”, diz o canhoto, que tem “o telemóvel sempre na mão” para estar a par do que sucede com os seus entes queridos na Ucrânia. Zinchenko revela que, quando a invasão russa começou, a sua mulher o acordou “em choque, a chorar”. “Não consigo explicar o que senti”, refere o jogador.
Questionado por Lineker sobre o que sente ao ver imagens ou vídeos da destruição, Zinchenko, visivelmente emocionado, é perentório: “Só choro. Só consigo chorar. Está tudo na minha cabeça… Imagina o sítio onde nasceste, onde cresceste, e agora é só chão vazio. Não consigo imaginar os sentimentos das pessoas que estão lá”, refere o companheiro de equipa de Rúben Dias, João Cancelo e Bernardo Silva.
Zinchenko é natural de Radomyshl, a 110 quilómetros a oeste de Kiev, mas mudou-se, aos 11 anos, para Donetsk, para ingressar na formação do Shakhtar. Quando a guerra em Donbas começou, Zinchenko fugiu para a Rússia onde acabou por jogar, em 2014/15 e 2015/16, no Ufa, antes de assinar pelo Manchester City.
Antes do jogo, no dia 1 de março, entre o Peterborough e o Manchester City, da FA Cup, as equipas entraram em campo com uma bandeira da Ucrânia (Foto: Michael Regan/Getty Images)
Com o seu passado na Rússia, o futebolista do Manchester City diz-se “surpreendido” que “nenhum jogador russo dissesse algo” para condenar a guerra. “Simplesmente ignoraram”, lamenta o esquerdino.
Zinchenko denuncia que, devido à guerra, “as pessoas estão a morrer à fome, a dormir debaixo do chão, em bunkers, sem terem uma vida decente”. Mas não duvida: “Eu conheço a mentalidade do meu país: eles preferem morrer — e vão morrer —, mas não vão desistir”.
O jogador do City, que agradece aos jornalistas que se encontram no terreno a cobrir as eleições — “estão a colocar a vida deles em perigo para mostrar ao mundo a verdade” —, explica que, por “jogar no Manchester City e ter 1,5 milhões de seguidores no Instagram”, tem a “missão de mostrar ao mundo o que está a acontecer na Ucrânia”.
Zinchenko, num dos momentos da conversa com Gary Lineker nos quais as lágrimas mais encheram a sua cara, resume a sua mensagem: “Que a guerra pare. Por não favor, não ignorem isto, temos de parar a guerra”. O futebolista avisa do “risco enorme” que seria “a Rússia tomar o que queira tomar”, deixando depois a interrogação sobre “que país será amanhã”?
Adeptos do Manchester City mostram uma bandeira da Ucrânia em apoio a Zinchenko, no duelo do clube contra o Peterborough (Photo by Marc Atkins/Getty Images)
Nos últimos dias, o mundo do desporto tem-se desdobrado em manifestações de apoio à Ucrânia, com os encontros do Manchester City a serem palco de diversos gestos a favor de Zinchenko. O médio, que também atua a lateral, sublinha que esse tipo de apoio “ajuda muito” e que “há pessoas na Ucrânia” que lhe pedem os vídeos ou as imagens das manifestações de solidariedade.
“Ando pela rua e há crianças de 10 anos que me dizem ‘rezamos pelo teu país’. Aí, as lágrimas surgem-me imediatamente”, conta o atleta.
Zinchenko, que tem “tanto orgulho em ser ucraniano” e sê-lo-á “para sempre”, “para o resto” da sua vida, terminou a conversa com Gary Lineker com uma mensagem em ucraniano que o mundo já se habituou a ouvir e abraçar: “Slava Ukraini. Glória à Ucrânia”, diz, de gesto sério, face emocionada e a mente colocada a milhares de quilómetros de distância.