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Há 50 anos, o maior ciclista português retratava-se: “Fiquem sabendo que o Agostinho não é um tipo soberbo, nem vaidoso, nem pirrónico”

Entrevistas Tribuna

Arquivo A Capital

Antes de dois pódios no Tour de France, mas já vencedor de três Voltas a Portugal, Joaquim Agostinho deu esta entrevista ao Expresso para, em teoria, dizer o que lhe ia na alma sobre a necessidade da classe de ciclistas se unir e criar um sindicato. A conversa, porém, acabou por ser sobre muito mais do que isso. Recuperamos o trabalho publicado há 50 anos, a 6 de janeiro de 1973, na primeira edição do Expresso

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Inácio Teigão

Já alguém se terá lembrado de perguntar o que fazem eles? Eles que durante determinado período de cada ano concitam as atenções gerais de uma multidão heterogénea estimada em muitos milhares de almas? Talvez sim. Ou... talvez não! Eles. Mas, quem são «eles»? Eles são aqueles que, tantas vezes cansados das agruras do viver resolveram embarcar no comboio da aventura em busca afadigada de uma vida onde se visionem outros horizontes mais ridentes. Então tirados dos seus cuidados, foram fazer aquilo que pensavam poder restitui-los à sua verdadeira dimensão de seres humanos cujos direitos andavam muito ignorados. Eles, se querem saber, são os ciclistas.

Esses «heróis» idolatradas, endeusados, incensados, acarinhados, aplaudidos, incitados, que no decorrer da Volta a Portugal em Bicicleta levam o espectáculo ao público, ali mesmo à porta da gente, multifacetado de peripécias, alegre agora, policromo, carregadinho de sortilégio, alegre, catita, enfeitado, risonho, para logo de seguida, numa curva do caminho, num grão de areia da estrada, se metamorfosear em drama, quando o homem voa de cima da máquina e morde o pó, limpa o suor nas asperezas do caminho e role por ali desamparado feito farrapo humano.

Eles animam a velha festa pedaleira, alegria de um povo aldeão a quem nunca se possibilitava condições para admirar outros espectáculos. Do Minho verdinho, garrido, de paisagens maravilhosas ao Algarve torrado, de mar bonançoso e areias cor de mel, as bicicletas correm nos Agostos tórridos de cada ano quebrando aqui e além etérea pacatez de burgos descansados em gesta de trabalho ancestral.

E depois

Vivemos nutra país sem ciclismo a sério. O nosso desporto do pedal, como tantos outros desportos, navega ainda muito ao sabor do improviso, da imaginação mais ou menos fértil de uns quantos homens de boa vontade animados. O ano é longo e encadeado de acontecimentos multíplices. Há necessidade mais ou menos imperiosa de distrair ócios. Mas o ciclista, profissional de uma profissão que, paradoxalmente, não o chega a ser na exacta medida em que mal remunerada, sem compensações de jeito em mais de metade de cada ano, acabada a época das bicicletas, tem de continuar a viver.

Para uns (poucos) que têm melhores potencialidades atléticas para brilhar nas estradas do País ou da estranja houve a possibilidade de amealhar uns «cobres «precisamente à custa do esforço que lhes saiu do pelo. Mas, esses poucos, bem vistas as coisas, resumem-se a um Agostinho, um Mendes, um Andrade e pouco mais, um mais que é mesmo pouco.

O maioral

Ciclismo é policromia. Espectáculo do povo. Movimento, «vedetas» em parada. Alegria. Tristeza. Palmas. Vaias. Tons luminosos. E escuros. Ciclismo é tudo. Tudo quanto queiram é fazer o favor de imaginar. Adentro do ciclismo Agostinho é nome sonante. Nome maior. Porque de maioral se trata. O ciclista, excepcional no nosso meio e fora dele, quem é afinal como pessoa humana?

O que se esconde por detrás da máscara alegre do triunfador que sai pela «porta grande» aos ombros da multidão tal como o «diestro» sai da arena após «faena» em grande estilo? Agostinho nasceu em Brejenjas, um lugarejo meio ignoto perdido ali para as proximidades de Torres Vedras. Antes de ir cumprir o serviço militar foi trabalhador do campo. A vida dura, as dificuldades atinentes à sua condição de campesino deserdado de benesses marcaram o período mais significativo da sua existência como ser humano distantes dos louros da fama, das glórias difíceis, da evidência esquiva. Agora, porém...

“Tenho às vezes saudade dos meus tempos de menino vivendo à margem de barulhos, de festas, de palmadas nas costas. Escolhi uma profissão que me põe a vida em risco permanente. Basta um segundo de distração, um pequeno compasso de espera em cima da bicicleta e o trambolhão torna-se inevitável E afinal, para quê? Para ganharmos uma ridicularia que está muito longe de justificar tantos sacrifícios e tantas canseiras, tantas ausências do lar, tantos regimes duríssimos de treinos e de preparação, tantas esquivas a uma vida mais... humana! Não me queixo por mim. Eu ainda sou dos que escapo melhor. Reconheço que a projecção alcançada me deu algum proveito material. Mas então os outros, os meus colegas e adversários, profissionais sem espécie de condições para subsistirem dignamente, sem protecção nem meios para a conseguirem? Não senhor! Ciclismo é bonito de ver mas tremendamente custoso de praticar. Isto assim está mal. E urge estar bem”. Começo a conhecer melhor o homem. Agostinho surpreende-me. Não é mais aquela figura importante, tresandando soberba, mui senhor do seu nariz que imaginávamos. Está um homem atilado. Que sabe pensar as palavras que profere. Adulto na verdadeira acepção do termo. Modesto. Cordato. Franco. Aberto. Conversamos na presença de Leonel Miranda, seu camarada na equipa do Sporting. O campeão é um homem que já descobriu, na áspera escola das bicicletas, quão resvaladiço é o mundo onde tem de movimentar-se.

Quem nos defende!

As frases saem-lhe disparadas da boca. Parecem gritos de Ipiranga. Com a mesma velocidade que rola num contra-relógio em cima em cima do seu ganha-pão, Agostinho interroga-se: «Quem nos defende? Onde a Previdência? O abono de família? A assistência médica para a mulher e para os filhos? Que profissionalismo é este? Ele é uma espécie de «máquina-de-competição», inserido num complicado sistema de que provavelmente desconhece as origens, Agostinho foi o mito que se fomentou. O ídolo que se promoveu. Uma outra máquina, poderosa, está montada. Tem o seu esquema próprio, a sua publicidade. E expande-se quando é preciso. E, a maioria silenciosa, continua a ir na onda. Os corredores de bicicleta necessitam que os defendam das garras empresariais.

São eles que promovem o espectáculo, servem de bombos da festa, logo, parece-me justo e coerente que se lhes atribua um tratamento mais de harmonia com a importância que têm na consumação desse mesmo espectáculo. «Reparem que já não falo tanto por mim. Corro mais dois ou três anos e depois arrumo a bicicleta de vez. O que me preocupa é a desorganização da classe a que pertenço. Andam oitenta ou noventa corredores na Volta a Portugal. Certo. Mas, dentre esses, quantos se podem gabar de fazer, efectivamente, uma vida de profissionais de bicicletas? Quanto multo uma dúzia! E o que é feito dos outros, da maioria?» Agostinho continua a lançar perguntas para o ar. As palavras safem-lhe em catadupa. Quase atropeladas. Noto-lhe uma ânsia infrene de saber coisas. E não vislumbro ponta de jactância neste novo Agostinho. Longe do bulício das multidões desvairadas, distante dos compromissos de horários, das dietas rigorosas, das dormidas a tempo e horas, o mais famoso (e valioso) ciclista português de todos os tempos, que nem sequer tem a astúcia de um Alves Barbosa ou a elegância de um Ribeiro da Silva, mas que tem, em contrapartida, força física que vale por ambos os ciclistas citados, parece-me um rapaz perdido em congeminações a que é incapaz de dar respostas.

O Sindicato

«Sou um profissional. Mais bem remunerado que os outros profissionais portugueses, sim senhor. Por isso pago Imposto Profissional. Desconto para o Fundo do Desemprego. Claro. Pois, não obstante estes descontos, ainda me aparece mais outro; o do Imposto de Trabalho. Este, por intermédio da Câmara Municipal de Torres Vedras. Já recebi dois ou três avisos. Então que moralidade é esta? Um fulano não tem regalias de espécie nenhuma e é só pagar pare isto e mais aquilo? Em contrapartida precisamos de um Sindicato. E não o temos! Eis o bico de obra dos profissionais do pedal, um Sindicato. À semelhança do que estão a fazer os futebolistas, também nós, ciclistas, temos direito a constituir-nos em Sindicato.» Aí está. O problema transcende o âmbito do homem comum. Seja ele das bicicletas ou não. No caso vertente, uma nova época parece despontar para os homens do pedal. Eles acordam agora do letargo longo, longo, longo. Como que despontam de uma hibernação em que têm estado.

E, a dormir, é incomensuravelmente mais fácil não nos apercebermos de determinadas realidades. «Pois é. Temos um nome. O Agostinho tem um nome. Anda nas bocas do mundo. Em parangonas nos jornais. Nas entrevistas de Rádio ou da Televisão. Mas eu permito-me perguntar se isso só por si chega, se tal dá de comer a alguém? A mim, nunca deu. Gosto de andar de bicicleta. Evidentemente. E as noites sem dormir, a maledicência e a inveja deste mais daquele, a abstinência da ‘dolce vita’, e tantos outros reversos de uma medalha que quase não tem verso, se a analisarmos a frio?»

Agostinho continua a surpreender-me. Eu, que o vi na Volta a Portugal dominar o pelotão como e quando quis, brincar ao gato e ao rato com rapazinhos que nunca terão força nem determinação para lhe fazer frente, ao menos nesta meia dúzia de anos mais próximos, se ele quiser continuar a sacrificar-se pelas bicicletas, fazia do ciclista uma ideia completamente distinta. «Alguns indivíduos da digna profissão de Jornalistas têm criado uma imagem falsa de mim. Uns há a quem nunca concedi entrevistas que enchem páginas pespegando-lhe frases que me imputam. Outros alinham em ‘panelinhas’. Anti-Agostinho por môr de certas rivalidades a nível clubista. Chamo a isso escrever de cor. E tão escaldado tenho sido que me tornei no gato da história que da água quente tem medo. Eu aceito todas as críticas. Nem todos são obrigados a analisar os aspectos do ciclismo sob o mesmo prisma. Lamento é que, em redor do meu nome, se especule tanto. Sou um homem humilde. Calmo por natureza. Mas hão-de compreender que andar com uma responsabilidade em cima dos ombros sempre que participo numa prova desgasta o sistema nervoso do cidadão mais fleumático. Dai que pressões a que sou sujeito me façam, de quando em vez, rebentar os pontos pelas costuras. E nesses momentos que me transformo, saio fora dos eixos e tomo atitudes que depois acabo por deplorar. Fiquem é sabendo, de uma vez para sempre, os meus muitos amigos e também meus detractores, que o Agostinho não é um tipo soberbo nem vaidoso nem pirrónico.»

Agostinho fala de jacto. Por vezes quase atropela as palavras. Nunca o tinha visto falar assim. Com tanta desenvoltura e personalidade. Consciente do terreno que pisa. Firme nas frases que profere. De novo o Sindicato: «Sim, eu sei que posso dar um passo decisivo para a criação do Sindicato dos Ciclistas Profissionais. Tenho em certo prestígio, uma dada influência. Só que não sei a quem dirigir-me e como contactar com os outros camaradas de profissão. No entanto estou convencido - e digo isto apenas por puro palpite atendendo ao que está a passar-se noutros países - que, na próxima época, o ciclismo vai levar uma grande volta no nosso País. Nós somos seres humanos como quaisquer. Temos muitos deveres a cumprir para com a entidade patronal. Pois também haveremos de usufruir de umas quantas regalias dignas da nossa condição. Reivindicamos protecção, melhores condições materiais, imita respeito pelo nosso esforço.»

Arquivo A Capital

Agostinho na Bic

A Magniflex de Gribaldi foi até há pouco a única equipa estrangeira onde o ciclista do Sporting correu. Simplesmente a Magniflex deixou de ter ciclistas profissionais e vai dedicar-se apenas aos amadores. E Agostinho teve que mudar de ‘patrão’. Os pretendentes foram muitos. Todavia, quem ganhou a corrida foi a Bic, poderosa firma francesa de esferográficas que tem nas corridas de bicicleta uma das suas melhores formas publicitárias. E a Bic tem Luiz Ocaña, o espanhol radicado nas Gálias onde se tornou corredor famoso. Antevê-se, já, despique emocionante entre os dois ciclistas por uma supremacia que está ao alcance de ambos: chefe de fila da equipa.

«Ainda é cedo para tecer comentários sobre o que irá passar-se. Aceitei de bom grado ingressar na Bic porquanto gosto de mudar de ambiente, conhecer novas caras. Entendo até que um ciclista profissional devia mudar de camisola periodicamente. De contrário corre o risco de cimentar amizades multo fortes que acabam, inevitavelmente, por prejudicá-lo numa qualquer corrida, quando o amigo está em situação difícil». Sujeitar-se-á Agostinho a servir de ‘aguadeiro’ de Ocaña? A pergunta tem a sua razão de ser. O ciclista português, mau grado nunca ter esgotado todos os seus recursos na grande prova velocipédica cognominada do «maior espectáculo do mundo» que se chama «Tour de France», de há quatro anos a esta parte que vem conquistando posições de inegável relevância, ao passo que Ocaña, que começa por prometer mundos e fundos, tem falhado estrondosamente. «Estou disposto a servir de ‘aguadeiro’ sim senhor! Se se provar que Ocaña é melhor que eu não terei rebuço em ajudá-lo. Mas esse problema espero que sejam os responsáveis pela equipa a considerá-lo. Se tiver de ajudar Ocaña, só não o levo ao colo quando ele necessitar se não puder.» Agostinho é assim: franco, leal, aberto, sem malícia nem segundas intenções.

Enquanto conversávamos, Manuel Peres batia chapas. A dada altura, porém, meteu-se abertamente na conversa e atirou de chofre a Agostinho: «Porque é que você é tão teimoso?» O ciclista embatucou. E depois, sem ponta de má disposição confessou que nunca lhe tinham dito abertamente uma coisa dessas. No entanto... «Não é bem uma questão de teimosia, embora eu, quando marco determinada linha, costume segui-la quase intransigentemente. O que sucede é os meus colegas de equipa lá fora por vezes não me prestarem a colaboração essencial nos momentos críticos. Então eu afino mesmo. Perco as estribeiras. E então, nessas fases, sou mesmo teimoso. De resto podem crer que sou um indivíduo tão compreensivo ou mais do que o mais compreensivo desta terra.»

Planos para a nova época

Agostinho está na grande roda das bicicletas. O momento é crítico. Ele terá, desta feita, é que tentar saltar o grande barranco. A projecção internacional não só é custosa de adregar como é ainda mais difícil de manter. Joaquim Agostinho subiu. Agora terá que ir mais além «Tenho planos e projectos. Para já, de entre as Voltas a Itália, Espanha, França, Suíça e Portugal tentarei correr pelo menos três: França e Portugal serão, posso dizer, certas. Depois gostaria de tentar a Itália, que nunca corri. Se não puder ficará a Espanha, enquanto a Suiça dependerá do calendário a elaborar brevemente.». Promessas… «Não. Promessas não é comigo. Tentarei fazer aquilo que estiver ao meu alcance. Agora prometer é que não. Sou alérgico a promessas que depois posso ser incapaz de cumprir»

Agostinho. Um nome. Um homem. Um mito. Incensado. Louvado. Aplaudido. Assobiado. Agostinho. O maior da nossa reduzida praça velocipédica. Dos maiores da grande praça das bicicletas mundiais. O Homem projecta-se para o espaço sideral. Alarga agora, ambicioso, a gama dos seus vastos conhecimentos. Dimensiona-se.

Mas as coisas terrenas não podem nem devem ignorar-se. Ciclismo. Desporto? Sim! Ao nível amador. Não! Quando profissional, Agostinho entrou no sistema. Evoluiu. Deixou de ser o modesto trabalhador rural de Brejenjas. Por causa do ciclismo. Aqui ou em qualquer parte veículo de promoção social. O espectáculo dá aquilo que um trabalho honesto raras vezes consegue: independência económica. Mal do ciclismo? Claro que não!...