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Inês Henriques: “Já estava num estado em que podia cair para o lado a qualquer momento”

Inês Henriques: “Já estava num estado em que podia cair para o lado a qualquer momento”
Bryn Lennon

Há meses que só pensava em ser dona do recorde do mundo que conseguiu, no domingo, por Porto de Mós, Leiria. Inês Henriques, aos 36 anos, tornou-se na mulher mais rápida do planeta a marchar durante 50 quilómetros. Diz que isto sempre lhe foi natural, porque vem de Rio Maior, o “sítio onde nasceu a marcha” em Portugal, e queixa-se que não há mais miúdos a marchar por culpa do telemóveis e dos computadores. De riso fácil, acordou a sentir-se bem depois de mal se aguentar em pé no final da prova

Durante a prova tinha noção que estava a caminho de um bom tempo?
Sim, até aos 40, 42 quilómetros, ia num ritmo para 4:02 ou 4:03. Depois é que fui quebrando e os últimos três quilómetros foram muito penosos. Não sei se fiz seis minutos por quilómetro, mas devia estar lá perto. No último quilómetro, quando passo a marca dos 500 metros, olho para o relógio: "ok, já vão ser menos de 4 horas e 10 minutos".

Ficou toda contente?
Pensei que tinha de ir até ao final sem correr riscos, já estava num estado em que sentia que podia cair para o lado a qualquer momento [ri-se]. Mas, no final, foi fantástico, a tentar manter-me em pé [mais risos] para as fotografias, foi difícil. As emoções foram muitas, eu e o Jorge Miguel [o treinador] chorámos que nem uns perdidos, porque já são muitos anos a trabalharmos juntos. Tanto eu, como ele, queríamos que esta história terminasse bem.

Era um objetivo que decidiram em conjunto?
Há cerca de dois meses falámos e assumimos isto. Decidimos que íamos tentar. Quando o divulgámos para a comunicação social, perguntaram-me: "Então, e se não conseguir?". A verdade é que nunca pus a hipótese de não o conseguir. Nunca pus a hipótese de falhar o recorde do mundo, de não melhorar a marca da sueca. Pensei sempre que era possível, porque os treinos que fiz indicavam que sim.

A ficha caiu-lhe no momento em que cortou a meta?
Hum, com tantas emoções juntas, não queria acreditar que já estava na meta. Com aqueles quilómetros de sofrimento, foi um misto de alegria e de choro. Foi a recompensa de uma carreira desportiva. Sou a segunda portuguesa que está no livro dos recordes do mundo [a primeira foi Susana Feitor, em 2001, nos 20km]. Este é meu, ninguém mo tira. É meu, do Jorge Miguel, da minha equipa e do meu clube de Rio Maior, que é o maior de Portugal em marcha.

Lembra-se de quando a Monica Svensson estabeleceu o recorde que bateu, em 2007?
Não, não.

E chegou a competir contra ela?
Talvez, mas não me recordo. Já são tantos anos [mais um riso].

Quem foi a primeira pessoa a quem ligou, depois da prova em Porto de Mós?
É assim, estavam lá a minha mãe, a minha irmã, os meus sobrinhos, a presidente da câmara, o ex-presidente, e estavam as pessoas que me costumam acompanhar.

Estava toda a gente à espera do mesmo, portanto.
A única pessoa a quem liguei foi ao meu pai, que não foi ver porque diz que eu lhe dou azar. Liguei-lhe, e a ele, que é um homem que não quer mostrar sentimentos, caiu-lhe uma lagrimazinha. Foi muita emoção junta.

Por que começou a marchar?
Entrei para o atletismo em 1992, a Susana já tinha sido campeã do mundo e o Jorge Miguel, de certa forma, já estava a criar o grupo da marcha. Eu identifiquei-me logo e obtive logo bons resultados como infantil. Pronto, gostei da marcha e por cá fiquei.

Não foi estranho começar a marchar em vez de correr?
Em Rio Maior não era, porque havia muita gente a marchar. Rio Maior, sem dúvida, é o sítio onde, de alguma forma, nasce a marcha em Portugal. Para nós é algo natural. Todos os nossos miúdos do Clube de Natação de Rio Maior fazem de tudo, e também fazem marcha. Quando são mais velhos, cada qual se especializa no que pretende. Mas todos fazem, mais ou menos, todas as disciplinas de atletismo.

É difícil, ao início, uma pessoa habituar-se a marchar?
Para mim não foi. Para alguns miúdos vejo que é mais difícil, pela falta de elasticidade, e também pelo facto de, hoje em dia, as crianças não brincarem na rua como, antigamento, o fazíamos. Algumas até têm dificuldade a correr, não conseguem adaptar os movimentos. Acho que isso é muito telemóvel, muito computador e muitos videojogos. Não saem de casa nem vão para a rua brincar como eu, a minha irmã e os jovens do meu tempo faziam.

Mas brincar à marcha, na rua, também não é algo proriamente comum.
[Ri-se um pouco] Sim, eu ainda andei no basquetebol, mas vi logo que não tinha futuro para aquilo. Vi que não ia crescer muito, tendo em conta que tenho dois centímetros a mais que o meu pai, não ia crescer mais que aquilo [Inês tem 158cm e volta a rir-se]. Fui para o atletismo e lá fiquei.

E qual é a sensação de uma pessoa ter que marchar durante quatro horas?
Ainda não acredito muito bem que o fiz. Entrei e o máximo que tinha feito era cerca de três horas, ou 23 quilómetros. Quando cheguei ali aos 36 quilómetros pensei "ok, esta parte tu nunca fizeste". Passei aos 42 quilómetros e disse para mim: "Epá, uma maratona não é assim tão difícil" [risos]. Depois, naquela parte final, a partir das 3h30, começou a doer. O meu nutricionista já me tinha dito que, aí, normalmente, há sempre uma grande quebra.

O que fez nessa altura?
Como me tinham dito que, a partir daí, mais vale comer do que evitar, comecei a pedir um gel em cada volta que dava [ri-se outra vez]. Até houve uma altura em que comi dois de uma vez! Só pensava em aguentar-me até ao fim.

O que sentiu nessa altura, em que já estava de rastos?
Tinha alguma dificuldade em coordenar as pernas, os músculos já não me obedeciam como pretendia. Tentei manter e chegar até ao fim. Houve momentos em que só me apetecia parar. Mas não, fui a ralhar comigo própria. "Vai Inês, vai Inês". Até uma colega minha me disse isso. Estava mesmo no final e não podia morrer na praia, de forma nenhuma.

Conseguiu-se mexer quando acordou hoje [segunda-feira] de manhã?
Até estava bem! Às 9h já estava no centro de estágio, para fazer massagem, depois fui para Lisboa, a conduzir sozinha, já diz 10 minutos de corrida e agora estava a fazer jacuzzi. Fisicamente, até estou bem. Não tenho nenhuma dor específica, o que é bom, quer dizer que não há lesões. Agora é fazer o controlo da fisioterapia, já marquei tratamento para amanhã.

Quanto tempo demora a recuperar de uma marcha de 50 quilómetros?
Pois, não sei [ri-se], daqui a umas semanas digo-lhe. O que eu e o Jorge Miguel temos planeado para estas duas semanas é descanso ativo, só fazer umas corridinhas, muito leves, para regenerar bem o corpo. Dia 29 vou para a Serra Nevada para começar a treinar, com calma, para regressar a 18 de fevereiro, fazer o Campeonato de Portugal a 4 de março, a ritmo de treino, porque a 7 ou 8 vou para o México, onde farei as duas provas do circuito mundial. Na Cidade de Juárez e Monterrey.

Fora essas provas, e agora que tem o recorde mundial, quais são os objetivos?
Pronto, é assim, não obtive a marca de referência para os Campeonatos do Mundo. Então, agora é concentrar-me nos 20 quilómetros e esperar que mais mulheres no mundo façam o que eu fiz para termos a força para que a IAAF (Federação Internacional de Atletismo) coloque a prova de 50 quilómetros com classificação independente. Separada dos homens. Porque, se eu tivesse mínimos e fosse ao Mundial, ia fazer uma prova mista, ia defrontar os homens. Não é justo.

Porque esses mínimos estão de acordo com os tempos de atletas masculinos.
Como é óbvio. Eles aumentaram um bocadinho os mínimos, mas, se até agora a melhor marca feminina estava nas 4:10.59, vão fazer um mínimo de 4:06? É para calar as mulheres e para não as terem lá, de alguma forma. Também quero ser um exemplo, e espero que as mulheres sigam o meu exemplo, para que tenhamos força e consigamos ter igualdade na prova dos 50 quilómetros.

Quantas mulheres terão que fazer tempos semelhantes ao da Inês para que a IAAF mude de ideias?
Não sei. Mas é assim, eles têm de definir um mínimo de acordo com as mulheres. Acho que deverá ser 4 horas e 25 minutos ou 4 horas e 30 minutos, menos que isso não tem lógica. Se verificar as melhores marcas das atletas, têm algum valor, mas não são de elite mundial. Se mais mulheres do top-10 forem fazer a prova de 50 quilómetros, vão fazer melhor, ou similar, à minha marca.


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