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Crónica

Da casinha no meio da floresta com ursos, chacais e lobos à volta até a surfar no Mar Negro

O dia começou em Istambul, mas logo o surfista Filipe Jervis, o snowboarder Ricardo Araújo e o skateboarder João Allen partiram em busca de ondas no gélido Mar Negro. Antes, uma noite passada numa casa muito particular, a dormir com temperaturas negativas

Filipe Jervis

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Estou de volta à Tribuna Expresso! Maioritariamente porque esta quarta-feira conseguimos finalmente surfar mas já lá vamos…

Terça-feira foi dia de absorver alguma cultura turca e irmos até à zona histórica de Istambul. Aparentemente, Istambul está dividida em três zonas: europeia (onde ficámos), asiática e histórica. Ainda não fomos à asiática mas só de mudar da europeia para a histórica, parecia um mundo novo! Turistas, muita gente a falar inglês e tudo feito para o turismo. Começámos por ir ao Grande Bazar, mas com um objetivo: queríamos autorização para conseguir que o Allen “skatásse” nos telhados do Bazar! Tinha tudo para serem as imagens de uma vida, mas mesmo com a ajuda do Furkan (amigo do Ricardo da Turquia que tem ajudado muito nas limitações da língua, principalmente), foi impossível subirmos até ao telhado!

Fomos guiados pelos polícias do Bazar até a um gabinete de administração onde nos disseram que gostavam de nos ajudar mas era mesmo preciso uma autorização especial do governo. Aproveitámos para dar uma volta pelo bazar, onde percebemos que o maior negócio da Turquia são lojas de joalharia. É incrível ver as montras e o que eles vendem!

Depois do Bazar, seguimos na direção de duas das mesquitas mais icónicas da Turquia, mas não sem passar primeiro num dos maiores estereótipos do país, os vendedores de gelados que fazem malabarismos com os cones e as bolas, enganando por completo o comprador. Na verdade já sabíamos para o que íamos mas conseguimos ser enganados na mesma! Fomos então parar à praça que tem as tais mesquitas, uma conhecida por Mesquita Azul e a outra por Ayasofya Camii. Não entrámos em nenhuma delas! Uma porque estava fechada ao público, outra porque estava uma fila grande e, uma vez mais, estávamos com tempo contado. Apesar de não termos visitado, não há palavras para descrever os detalhes destas mesquitas e, acima de tudo, a grandeza de ambas. Uma mais recente que outra, mas realmente impressionante. Ainda deu para o Allen fazer umas brincadeiras antes de arrancarmos para o nosso Airbnb, para almoçarmos e arrancarmos logo de seguida. Para onde? Nem sabíamos muito bem, apenas que era para a zona mais perto do surf.

O Furkan falou com um amigo que nos ia dar casa, perto do mar, e que ia até começar a fazer as brasas para um churrasco, que com toda a gentileza, decidiu fazer-nos.

Entre alugar carro, ir buscar as pranchas de surf a um amigo do Furkan e seguirmos até à zona do surf, a viagem durou algumas 5 horas. Uma carrinha cheia de malas, pranchas de surf e snowboard, mais 6 pessoas, não foi fácil e já estávamos todos exaustos, a começar pelo Ricardo que já nem falava, estava só concentrado na estrada para não haver vacilos nem perdas de tempo.
Quando chegamos a casa do amigo do Furkan, por volta das dez da noite, tivemos todos ali num compasso de espera dentro do carro a tentar perceber se aquilo era mesmo o sítio ou não… Tratava-se de uma casinha meio acabada colada a mais três casas em mau estado e com um ar abandonado, no meio de uma floresta que contém (disse-nos mais tarde) animais perigosos como ursos, chacais, lobos, entre outros, uma coluna a bombar trance psicadélico, uma pequena lâmpada a iluminar pouco ou nada e uma churrasqueira com as brasas a uma temperatura de -2 graus.
O nosso pensamento foi: “temos a certeza que é aqui?”, mas obviamente o Furkan descansou-nos e mal falámos com ele, automaticamente percebemos que estava tudo bem, inclusive o rapaz tinha estudado em Portugal e até dizia algumas palavras em português. O único problema era mesmo o frio que estava na rua! E se nunca fizeram um churrasco com temperaturas negativas, não aconselho nem um bocadinho! Tínhamos duas mini fogueiras para nos aquecermos, mas a logística foi complicada, e piorou quando começou a chuviscar, e o dono da casa diz que temos que apagar a lâmpada porque havia possibilidade de haver um curto-circuito! Valeu-nos as lanternas dos telemóveis para conseguirmos ver alguma coisa!

A vontade de fazer ali um convívio era grande, mas a exaustão era maior, e o cenário de dormida também não era muito feliz, muito devido ao facto de estarem temperaturas negativas dentro de casa. O Ricardo só comparava o frio que estava com o refúgio na montanha do Toubkal na edição passada. Com bom espírito e muita galhofa lá nos deitámos num quarto onde fiquei eu, o Bandeira, o Allen e o Ricardo, deixando o Pedro Mestre na divisão de baixo, na sala, onde ficaram temperaturas negativas ao longo da noite! Deu definitivamente o corpo às balas para podermos dormir com aquecedor no quarto de cima.

Por volta das sete da manhã, o despertador toca e é hora de arrumar tudo para ir procurar o surf no Mar Negro. Sim, no Mar Negro! Sei de pessoas que já surfaram aqui, mas teremos nós sido os primeiros portugueses a surfar no Mar Negro? Não quero ser a pessoa que dá esse claim mas se alguém pudesse confirmar, era fixe!

Dito isto, lá seguimos para o contacto que tínhamos de uma surfhouse que há aqui na Turquia, mais concretamente numa zona chamada Babali. Apanhámos o filho do dono, na surfhouse, e com a sua ajuda começámos à procura de spots para surfar. Swell havia, mas vento também. Cálculo que isto seja sempre assim, porque estamos num mar e para haver swell muito provavelmente seria sempre com vento. Ainda tentámos encontrar uns pointbreaks mas a verdade é que há muito mais opções de beachbreaks.

Ainda achei que ia surfar uma esquerdinha ao lado dum morro, mas quando nos aproximámos para ver a onda, era muito mais perto das rochas do que parecia e por isso não era opção. Acabámos por parar num beachbreak que tinha uma esquerda que parecia funcionar. Parámos o carro frente do pico, praticamente em cima da areia e começámos todo o processo de preparação para entrar na água. Há que mencionar duas coisas: a temperatura do ar estava nos 5 graus e a da água nos 3. Isto significa que iria ser sempre preciso fato quente, luvas, gorro e botinhas. Felizmente, a Dakine providenciou-nos todos os kits para estarmos preparados para este frio.

Foi giro ver o Allen a adaptar-se e a queixar-se do frio que estava, mas não deixou de entrar na água e tentar a sua sorte. Acabou por ficar no inside a apanhar as suas ondas, mas tenho a certeza que ficou feliz por poder dizer que surfou no Mar Negro. Já eu, o Ricardo e o rapaz local fomos até ao outside tentar a nossa sorte. Havia um pico de esquerda que tinha algum potencial, e acabámos por ter uma fria mas divertida sessão. O Ricardo e o miúdo surfaram cerca de 30 a 40 minutos até começarem a acusar o frio. Eu, sendo como sou, e sabendo que havia possibilidade de amanhã não haver ondas, fiquei na água quase duas horas. Tinha comigo a pressão de ter uma parte de surf minimamente decente no documentário, e a pressão de produzir algumas fotografias também e por isso não ia desistir por muito frio que estivesse! Claro que ao fim de algum tempo, o corpo começa a ceder ao frio e a cabeça começa a explodir a cada bico de pato.

Sei que não fiz o meu melhor surf, o mar estava complicado e nem consegui chegar ao ponto máximo da minha performance, até porque para mim é sempre estranho surfar de botinhas. No entanto, saí da água com a sensação de que tinha feito o que era suposto no que toca ao surf nesta expedição. Surfei no Mar Negro quase uma hora sozinho! Quantas pessoas, quantos surfistas profissionais no mundo podem dizer tal coisa? Não é este o conceito de surf? O que são campeonatos e ondas perfeitas (que sabemos todos que tem dado em Portugal), ao lado de surfar no Mar Negro? São memórias e conquistas que vão ficar comigo para sempre. Que venham mais destas.

* Este texto faz parte de uma série de crónicas escritas por um surfista (Filipe Jervis), um skater (João Allen) e um snowboarder (Ricardo Araújo) profissionais durante uma viagem à Turquia em busca de ondas, neve e ruas para rolar, fruto de uma parceria entre a Tribuna Expresso e a Dakine Expedition.