Segunda-feira acabou por afetar um pouco a moral pelo que se passou e passa aqui na Turquia. Foi um dia mais tranquilo e a pensar em todas as pessoas que foram afetadas pela tragédia do sismo.
Depois de um dia presos no hotel devido a uma tempestade de neve, a vontade de sair e ir atrás de uma boa aventura era grande. Tudo indicava que ia ser um dia incrível, com a ideia inicial de irmos nas motos de neve até à estrada principal, arrancar de jipe até uma vila para fazermos snowboard e conhecermos um bocado da história de snowboard na Turquia.
Prontos às 6h30 da manhã, notava-se que tinha nevado muito durante o dia e noite de segunda-feira. Percebemos que iria ser uma viagem neve atribulada. A ideia: eu e o Nuno Bandeira (film maker) irmos numa moto com um condutor, o Ricardo com outro condutor, o Pedro Mestre com outro e o Allen ia ficar no hotel à espera que o viesse buscar numa segunda volta.
Mal arrancámos, deu para perceber que estava muita neve, não dava para ver a estrada e a visibilidade, de certa maneira, era reduzida. Nos primeiros metros, as três motos foram ficando atoladas na neve e, com esforço de todos nós, lá as íamos tirando da neve e ganhávamos mais uns metros. Como devem calcular, três pessoas numa moto torna tudo muito mais difícil… o Bandeira ia sentado, o condutor de pé num dos lados da moto e eu do outro lado a contrabalançar. Digo-vos que é muito mais difícil conduzir uma moto de neve do que parece, é preciso um constante contrapeso e não parar para não afundar.
Ao fim dos primeiros 10 minutos nesta luta contra a neve, estava realmente difícil de perceber o caminho e de conduzir naquelas condições! Eu e o Bandeira mandámos o nosso condutor parar porque já não estávamos confortáveis com a situação. Esperámos até o Ricardo e o seu condutor chegarem para analisarmos a situação. Eu e o bandeira fizemos alguma pressão para abortar e voltar para trás, mas os condutores pareciam confiantes e decidimos arrancar novamente. Nem 50 metros andámos - o Ricardo e o seu condutor afundaram a moto na neve e as instruções que tínhamos era para não parar porque eles se iriam safar.
Continuámos, nesta fase já eu sentado porque tinha perdido as forças de tanto contrabalançar a moto, e há um momento que deixo de ver com a neve. É aí que o nosso condutor grita “pull, pull” para eu e Bandeira contrabalançarmos o peso dele. Quando dou por mim, estou a bater contra uma rocha com o cotovelo, deitado na neve e o condutor ao meu lado. É nesse momento que me deparo com o Bandeira ainda na mota, ela a voar e ele a atirar-se para fora da mota e direto de braço contra uma rocha. Escusado será dizer que a mota seguiu sozinha até um rio no fim dum vale.

Pedro Mestre
Aí começaram os problemas. Com alguma frieza, depois de ouvir o Bandeira a berrar de dores, tentei acalmá-lo do choque inicial e tentar perceber se era grave ou não. Tive a informação que não. E é quando o nosso condutor arranca para o rio para tentar salvar a moto. Aí começa a segunda parte do problema: estamos no meio do nada, a 20 minutos do hotel, no meio duma tempestade de neve, com sensação térmica de -17 graus e, para piorar tudo, não tínhamos maneira de comunicar com ninguém porque foi o Ricardo a ficar com o walkie-talkie… Considero-me uma pessoa calma e que lida bem com situações problemáticas, mas a de hoje conseguiu apoderar-se de mim e acabei por ter altos e baixos e descargas de adrenalina como nunca tive. Valeu-me o Bandeira, que nos primeiros momentos conseguiu transmitir-me calma e tentámos delinear um plano. Começámos por ligar para o Allen que estava no hotel, mas sem sucesso. Ligámos para o Ricardo, mas sem sucesso e o pânico foi-se apoderando aos poucos. Tudo isto enquanto o nosso condutor tentava escavar um buraco de quase dois metros de profundidade para tentar tirar a moto dali.
Isto tudo levou uns longos 15 minutos, completamente ao relento e com a possível ideia de arrombar uma pequena cabana que estava ali perto, chega o Ricardo com a sua moto e condutor. Deu-me duas sensações: a de algum alívio porque é a pessoa com mais experiência nisto, mas de algum stress, porque eram mais pessoas a meterem-se numa situação complicada.
O Ricardo automaticamente ativou os protocolos de segurança que adquiriu ao fim de tantos anos. Começou por fazer-nos cavar um buraco de um metro de profundidade, colocar as mochilas todas e mala de pranchas a fazer de parede para nos podermos proteger do vento e da neve e tentar aquecer-nos. Enquanto isto, o condutor do Ricardo desceu o vale para tentar ajudar o nosso a tirar a moto dali e parar piorar a situação pisou o rio, o que fez com que congelasse um pé para o resto da situação. Tentando acalmar e aquecer, a adrenalina foi-se apoderando de mim, comecei a entrar quase em choque e foi quando tive a frieza de me lembrar que tinha uma manta de emergência na mochila, manta essa que retém o calor humano e previne o frio de entrar.
Embrulhámo-nos na manta enquanto o Ricardo decidia o plano e tentava perceber qual era a melhor maneira de resolver a situação. A certa altura, a prioridade passou a ser uma: tirar-nos dali. Chamou os condutores, disse-lhes para esquecerem a outra moto e focar todas as energias em trazer-nos para o hotel.
Os problemas continuaram. A moto que tinha chegado com o Ricardo atolou quando o condutor estava a dar a volta na direção do hotel e apercebemo-nos que a terceira moto, do Mestre e do seu condutor, estava afundada quase dois metros de profundidade e também não podia ajudar-nos. Caiu-me tudo. A única coisa que me lembro de dizer ao Ricardo foi: “Como é que vamos sair daqui, a vossa moto era a única salvação e também está presa!!!!”. Foi aí que o Ricardo olhou me nos olhos e, alto e bom som, me disse: “A moto vai sair, confia em mim, 10 minutos e temos a moto cá fora. Agora acalma-te e ajuda a cavar a neve à volta da moto.”
E foi exatamente o que fiz, esqueci tudo, foquei todas as minhas energias em fazer o que me foi pedido e utilizar toda a minha força para virar a moto e metê-la pronta a utilizar. Ao fim de muito escavar, e de virarmos uma moto daquele peso ao contrário, ficou operável e foi aí que tivemos que tomar a decisão de quem ia primeiro para o hotel. Depois de ajudar, tive um momento de maior frieza e estava disposto a dar a minha vez ao Bandeira, mas o Ricardo achou que era a melhor opção ser eu a voltar!

Pedro Mestre
Abracei o Ricardo, fui ter com o Bandeira que estava enrolado na manta térmica e dei-lhe um abraço, disse-lhe que ia correr tudo bem. Arranquei e tive os 15 minutos mais tensos da minha vida, só queria chegar ao hotel e o condutor a dar tudo para não atascar. A cinco minutos do hotel passei pelo Mestre e o seu condutor, que tinham acabado de conseguir desatascar a moto deles. Cheguei, acalmei-me e comecei a aquecer e a pensar no que estava a acontecer no sítio onde os deixei. Passado pouco tempo, o Mestre e o seu condutor chegaram a pé.
Mal nós saímos de lá, eles arrancaram a pé para encontrar um abrigo, o Ricardo continuou com os seus protocolos, abriu o airbag de que tanto falámos e abrigaram-se. Restou-me esperar para vê-los a chegar, um a um, e ao condutor completamente morto por ter que transportar tantas pessoas numas condições tão difíceis como as que estavam.
Foram momentos de stress, pânico, adrenalina e dos mais difíceis que vivi na minha vida! O Ricardo foi um super-herói e vou agradecer-lhe, do fundo do meu coração, ter-nos salvado a vida. E por nos ter partilhado a maior segurança do mundo. Ficou sozinho na barraca em prol de garantir que todos nós chegávamos em segurança. Que bravo!
Depois de estarmos todos em segurança, foi momento de partilhar tudo com o Allen, que estava quieto, no hotel, sem saber o que se passava e partilharmos a nossa experiência entre nós! Dei um grande abraço ao Ricardo, agradeci-lhe, dei um grande abraço ao Bandeira, que curiosamente é a pessoa que mais partilha momentos complicados comigo e fui tomar um banho de água quente.

Pedro Mestre
Acabou a ser um dia silencioso, calmo e que todos nós absorvemos à nossa maneira, uns a dormir, outros a trabalhar, outros a falar com familiares e namoradas. Foi uma situação dura fisicamente e violenta psicologicamente, mas que não vai abater o espírito desta expedição. Temos todos vontade de continuar e de procurar dar a volta a este momento.
Para finalizar o dia e abstrair-nos de tudo, o Allen, sendo Allen, pediu autorização ao hotel para saltar do telhado com a sua prancha de snowboard. Conseguiu, e acabámos por ter um momento de descontração e um pouco mais de diversão, ao vê-lo a fazer algo que para ele foi banal, mas, para todos nós, incrível. Sonho conseguir fazer algo assim no fim desta viagem, apenas preciso de ganhar ritmo no snowboard e quem sabe.
Amanhã é um novo dia, vamos aprender com o que aconteceu e não cometer os mesmos erros. A aventura continua.
(e depois de tudo, já com todos em segurança, a malta do hotel juntou-se e foram buscar as duas motos que ficaram enterradas. Está tudo operacional.)
* Este texto faz parte de uma série de crónicas escritas por um surfista (Filipe Jervis), um skater (João Allen) e um snowboarder (Ricardo Araújo) profissionais durante uma viagem à Turquia em busca de ondas, neve e ruas para rolar, fruto de uma parceria entre a Tribuna Expresso e a Dakine Expedition.