Hoje podíamos falar desse guarda-redes bissexto que é Guillermo Ochoa ou dos eclipses de Lewandowski em jogos do Mundial, mas tivemos um escândalo das Arábias e tudo o resto passou para segundo plano. É que um Mundial só começa ao primeiro escândalo (há Mundiais sem escândalos ou apenas com pequenos incómodos, mas esses são Mundiais amputados de uma parte da alma). Desta vez não foi logo no primeiro jogo, como em 1990 ou em 2002, embora não tenhamos tido de esperar muito (outro elemento do escândalo nos Mundiais: é difícil que ocorra um grande escândalo a partir da segunda semana, quando a diferença entre equipas já se esbateu. Nesse caso é preciso uma hecatombe, um cataclismo, como o que aconteceu em Belo Horizonte em 2014 e que vitimou a seleção brasileira).
Ao terceiro dia, a Argentina afundou-se e quem ressuscitou foi a Arábia Saudita, com uma equipa de craques do Al-Hilal, do Al-Ahli, do Al-Nasr e, segundo pude apurar, um do Al-Fateh. Lutaram como condenados à morte por um indulto (e que a imagem não vos pareça exagerada: só nas últimas duas semanas foram executados dezassete homens na Arábia Saudita). Fizeram faltas agrícolas e o guarda-redes Al-Owais teve duas saídas que quase enviaram companheiros para o paraíso das setenta e duas virgens. Mas deram a volta ao resultado com estilo: os dois golos foram de fase final, dignos de um Maradona ou de um Saeed Al-Owairan.
O pecado da Argentina foi ter jogado como se tivesse todo o tempo do mundo, como se a derrota fosse uma impossibilidade ontológica. A seleção albiceleste teve três golos anulados – três! – e mesmo sabendo que argumentar com o VAR é inútil, a reação dos jogadores argentinos foi meio monástica, resignada, pouco latino-americana. Ninguém protestou muito e logo no momento de atirarem à baliza a postura corporal era a de quem desconfia da regularidade do golo e a de quem lá no fundo acha que aqueles golos anulados não lhe vão fazer falta.
Surpresa. Fizeram mesmo falta. Quer dizer, não terá sido surpresa para todos. Aposto que já deve ter aparecido um comentador que tem um primo que trabalha como analista de dados para um clube saudita e que já estava a adivinhar o resultado. Pronto, mas tirando esse hipotético comentador e um ou outro místico que acredita mesmo nos dotes feiticeiros de Hervé Renard, homem das camisas brancas e sósia de Jaime Lannister, ninguém estava à espera de uma vitória saudita. Sobretudo após os lamentáveis desempenhos dos catarenses e dos iranianos. Mas é assim que as surpresas acontecem: de surpresa.