Há uns anos, quando era apenas um jovem árbitro de futebol, recebi uma notícia muito perturbadora no preciso momento em que me preparava para viajar, em trabalho, para os Açores: soube da morte de uma pessoa que me era próxima.
Uma pessoa com idade, mas de quem gostava muito e com quem passava parte do meu tempo. Era aquela relação de carinho e respeito que se tem pelos mais velhos e que não se explica. Sente-se.
Quando o coração dela desistiu de bater, o meu gelou. Sabia que a idade não perdoava, mas não estava preparado para enfrentar aquele momento. Não assim, tão de repente, sem sequer considerar essa possibilidade. Confesso, foram momentos difíceis de digerir e aceitar, porque a ligação era forte.
Decidi que queria fazer a viagem à mesma.
Há, nessas alturas, algo que nos impele a manter os planos, a querer seguir em frente. É como se quem parte nos sussurrasse ao ouvido que não podemos desistir, que não podemos parar.
Como perceberão, não tenho grande memória desse fim de semana. Sei que o jogo era da II Liga (em casa do CD Santa Clara), mas não me recordo de quase nada do que aconteceu em campo.
Lembro-me apenas de estar acompanhado por uma equipa fantástica, com malta amiga (os tais que serão sempre amigos do peito), que puxou muito por mim. Não me largou um segundo, não me deixou cair no desânimo, não me deu tempo para sentir. Manteve-me firme e seguro. Estava um caco por dentro, mas fingia brilhar por fora. Por mim e por eles. Porque, nestas alturas, não basta ser. É preciso parecer.
Hoje sei que estive em campo sem estar.
Liguei o piloto automático e só me lembro de obrigar-me a honrar a memória daquela senhora fantástica, dando tudo o que tinha e não tinha. Dando o melhor de mim.
Não sei como consegui fazer aqueles 90 minutos. Não sei onde arranjei força para me concentrar, para focar no essencial, para fazer o que tinha que ser feito... mas consegui. Acho que há momentos nas nossas vidas em que chegamos ao destino sem saber como cumprimos o trajeto.
Acontece-nos muito quando, por exemplo, estamos a conduzir - suponhamos, do trabalho para casa - parando nos vermelhos, avançando nos verdes ou virando nos cruzamentos, sem darmos conta. Sem termos essa consciência. Estamos colados às memórias de uma música que passa na rádio e acabamos por cumprir todo aquele percurso sem bater, sem errar, sem estar lá... mas cumprimos e cumprimos com distinção.
Foi mais ou menos assim, naquele dia.
O mais estranho é que, no final do encontro, estava toda a gente feliz. Tinha corrido tudo bem, sem (grandes) falhas, sem polémicas, sem decisões controversas ou discutíveis. O jogo fez-se "com uma mão às costas", quando a cabeça nunca chegou sequer a aterrar em São Miguel.
O ser humano é, de facto, muito especial.
Há qualquer mecanismo que parece ser ativado quando é confrontado com o inesperado, quando é encostado à parede. Temos muito mais recursos do que imaginamos e parte deles são ativados assim, em situações inesperadas.
Ao longo da minha carreira, arbitrei outros jogos em circunstâncias muito difíceis, ou com angústia emocional, ou por dificuldade profissional. Eu e todos os meus colegas, garantidamente.
A vida privada e social não se demarca do profissional que tem a tarefa para cumprir. Há quem tenha mais (ou menos) capacidade em separar trigo do joio, mas quando é a morte a roubar-nos a vida que estimamos, somos confrontados com o maior dos testes.
Não sou caso raro e sei disso. Há milhares de exemplos iguais e piores do que este. Há, por aí, muita gente boa que foi capaz de se superar, de manter o foco, de seguir em frente em situações extremas, não permitindo que a dor afetasse o sentido de missão.
Chapeau.
Pelo que aprendi neste percurso, o sentimento de dor provocado pelo desaparecimento de alguém tende a ter efeito contrário. Não só não afeta a qualidade da entrega, como funciona ainda como uma espécie de força motriz, que nos arrasta para a frente e nos impele a fazer o que tem que ser feito, com nota alta.
Já a raiva momentânea, a frustração com algumas pessoas ou a inoperância face a determinadas situações, não. Quando estamos mais irritados, mais magoados ou desiludidos, deixamo-nos afetar. No caso de quem está em campo - árbitros, jogadores e treinadores - isso é muito óbvio.
Somos menos pacientes perante sensações de aparente injustiça. Cometemos mais erros, temos menos jogo de cintura, sentimos maior crispação. Damo-nos mais ao confronto e menos à serenidade. Corre quase sempre mal.
A verdade é que, por esta ou por aquela razão, somos todos gente que sente. Somos o reflexo das nossas vivências e experiências, do nosso quotidiano, do nosso estado de espírito momentâneo, da nossa estabilidade ou falta dela. Não há volta a dar.
Lembrei-me desta história numa altura em que tanta gente parece apressar-se a fazer juízos de valor sobre este e aquele. Os desta semana são o Matheus Reis e o Pepe, antes o Taremi e o Evanilson, depois sabe Deus...
Está sempre tudo pronto para apontar o dedo e disparar. Sai o meme, o artigo incendiário, o tweet desnecessário, a declaração evitável... e pronto. Já está. O craque que já foi aplaudido por marcar é estrangulado. O monstro que já foi elogiado por defender é triturado.
Catalogamos instantes esquecendo que são protagonizados por pessoas que carregam, em si, as mesmas virtudes e defeitos que carregamos. Como se tudo aquilo que a televisão dispara para as nossas salas de estar fossem suficientes para definir caráter, esquecer carreiras ou distribuir sentenças.
Que bons que somos a varrer os outros. Que sensíveis ficamos quando nos tentam varrer a nós. Nada iliba comportamentos censuráveis em campo, mas isso não pressupõe atacar pessoas, atacar profissionais que têm histórico, família e valores.
Calma. Muita calma. Apesar de parecer... não vale tudo.
P.S. - Depois de ler tanta barbaridade sobre a honra e integridade de alguns profissionais, deu-me para isto. Tenham lá paciência. Há dias assim.