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Duarte Gomes

Duarte Gomes

ex-árbitro de futebol

Mais uma época, mais uma oportunidade para melhorar o futebol. Mas, muitas vezes, gente boa esbarra em gente má

No dia em que arranca a versão 2022/23 da I Liga, o antigo árbitro internacional Duarte Gomes escreve sobre as novas recomendações dadas aos homens do apito para esta temporada, deixando uma esperança: que o futebol caminhe mais para ser "um exemplo de virtudes", com gente que "tem que servir a causa, não servir-se da causa para ganhar notoriedade"

Duarte Gomes

PATRICIA DE MELO MOREIRA/Getty

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SL Benfica e FC Arouca abrem esta sexta-feira as portas da Primeira Liga a mais uma época que, todos desejamos, seja pródiga em bom futebol jogado dentro das quatro linhas.

Todos nós temos obrigação de aprender com os erros do passado e perceber onde podemos melhorar e evoluir. Esta verdade aplica-se não só aos agentes desportivos que começam agora a desfilar talento e capacidade, como também àqueles que, como eu, têm por missão analisar e comentar o seu trabalho.

O contributo de todos deve ser positivo, construtivo e didático, ainda que no exercício de uma opinião crítica, porque são muitos os que são influenciados pelo que veem, ouvem e leem. Cabe-nos uma responsabilidade importante que não devemos ignorar, sob pena de alimentarmos discursos de ódio que só destroem o que de bom se pretende construir.

A esse propósito, parece-me claro que há muita gente competente e empenhada em redor do jogo. Pessoas boas, sérias e comprometidas em dar o melhor de si à indústria. Mas esse esforço, essa boa intenção, nem sempre são suficientes.

Muitas vezes, gente boa esbarra em gente má ou em obstáculos demasiado burocratizados, que se revelam difíceis de ultrapassar. Pode ser frustrante, muito frustrante.

Ninguém consegue empurrar sozinho uma parede de betão, mas muitos conseguem abanar a estrutura ao ponto de fazê-la vacilar. Se não com as mãos, pelo menos com barulho suficiente para que o eco a faça mexer.

Nunca subestimem a voz dos inconformados.

E por falar em inconformismo, a Liga Portugal - através da iniciativa "Media Partners Day" -, lançou um conjunto de ideias para as próximas épocas, que em teoria vão ao encontro das expetativas que todos temos em relação ao que merece o espetáculo: o desejo de uma justiça disciplinar mais célere, menos pesada, mais justa e eficaz; adeptos com melhores condições (em termos de segurança e de custos) para regressarem aos estádios, de onde há muito parecem andar afastados; instituição de um prémio para compensar a equipa que menos "queime" tempo útil de jogo; melhoria na calendarização e horário dos jogos, para tornar mais apelativo o negócio e merecidas as pausas das equipas que estarão mais em jogo; arrepiar caminho rumo à centralização dos direitos televisivos, etc., etc.

São medidas boas, não há dúvidas.

Muitas correspondem, aliás, à perceção pública, àquilo que qualquer pessoa razoável há muito entende que a indústria deve melhor.

Haverá outras medidas boas: a Premier League, por exemplo, vai avançar com a divulgação dos áudios "Árbitro/VAR" após cada jogo e a Federação Inglesa pondera banir qualquer adepto que leve material pirotécnico para os estádios. Mas o reconhecimento daquelas é passo importante rumo à excelência que se deseja.

Na arbitragem também houve novidades. Apesar das escassas alterações às regras, os árbitros receberam um conjunto de recomendações que mais não são do que o reconhecimento do que se viu, de menos bom, na época transata.

Todas as instruções que receberam fazem sentido e são pertinentes:

- Espera-se um "ataque" maior a quem simula faltas inexistentes ou lesões que nunca aconteceram (o futebol não pode dar palco a quem faz batota de forma sistemática e recorrente) e também a quem perde tempo deliberadamente (nomeadamente no processo de substituições, nas lesões ou nos recomeços de jogo). Espera-se ainda maior dureza disciplinar na punição de entradas que coloquem em risco a integridade física de outros profissionais, tal como se espera tolerância zero em relação a comportamentos de arruaça e leviandade nos bancos técnicos. A linha que separa a frustração pontual da má-educação deve ser bem definida pelos homens do apito.

Em tese, é tudo mais simples do que parece: o futebol é uma atividade que mexe com a alma e as emoções de milhões de pessoas. Em Portugal, essa é uma verdade inabalável.

Uma montra assim, tão visível e mediática, tem obrigação de ser um exemplo de virtudes.

Quem ocupa lugar de relevo neste universo (seja jogador ou dirigente, seja árbitro ou treinador) tem que ter ética e caráter. Tem que ter personalidade, coragem e independência.

Não pode andar refém dos outros ou focar apenas na sua carreira. Tem que servir a causa, não servir-se da causa para ganhar notoriedade.

Há quem tenha o perfil certo e há quem tenha o errado. É fácil, muito fácil ver onde moram uns e outros. Com o tempo, a seleção natural fará justiça e o jogo terá apenas aqueles que merece.

Até lá, que comece a rolar a bola e que isso seja um motivo de alegria para todos os que verdadeiramente amam este jogo.