Perfil

Crónica

A noite em que fomos atingidos por corpos celestes (crónica de um benfiquista que esteve em Vigo)

Francisco Fernandes Ferreira estava em Vigo, há 22 anos, quando o Benfica já tinha sofrido sete golos do Celta e ainda faltava meia hora por jogar. Lembra os sete rabos ao léu alinhados e premonitórios que viu a serem exibidos ao autocarro, à entrada de cidade galega, e o amigo que deu uma chapada na cara a Vale e Azevedo, à saída do estádio, antes de dizer para uma câmara de televisão: "paguei cinco [contos] e levo sete!"

Francisco Fernandes Ferreira

S.Sas-El Correo Gallego

Partilhar

Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete. De uma colina, sete rabos ao léu exibiam-se em simultâneo para o nosso autocarro, parado num semáforo à entrada de Vigo. Rimo-nos. Vinte e dois anos depois ainda não sei se recordo o sete — número da perfeição — porque aqueles rapazes estavam absolutamente sincronizados ou se é apenas um reflexo premonitório do que aí vinha. Naquela noite de 25 de Novembro, seria o nosso clube a ficar de calças na mão.

Outra cifra: 10 000. Como o mexilhão se alapa nas jangadas da ria viguesa, uma fauna roja chegara do Sul para se cravar em torno a Balaídos, bem antes da partida. A festa era tanta que roçava a má educação. O speaker do estádio saudou-nos e revelou que nem Real Madrid ou Barcelona arrastavam ali tanta gente. Até Vale e Azevedo, mais tarde sacristão na cadeia, apareceu no relvado para agradecer aos fiéis.

O então presidente do Benfica tinha olho para bancos: enquanto desviava dinheiro de uns, sentava treinadores vencedores em outros. Foi o primeiro a apostar em Mourinho, mas antes, em 1999, contratou Jupp Heynckes (que no ano anterior tinha vencido a Liga dos Campeões pelo Real Madrid). O alemão chegava aquele jogo contra o Celta — a contar para a terceira fase da Taça UEFA — como líder do campeonato português, mas o moral dos adeptos estava fragilizado.

O Benfica nunca tinha estado cinco anos sem vencer a liga (viria a estar dez) e dias antes perdera 2-0 com o pentacampeão FC Porto, de Fernando Santos. O plantel também não deixava sonhar, apesar de ter o falecido Robert Enke na baliza, o craque checo Poborsky e o jovem Maniche (futura estrela portista) nas alas e uma dupla de ataque com Nuno Gomes e João Vieira Pinto, maior referência do clube naquela década. Para piorar, o adversário estava em grande forma: a equipa treinada por Víctor Fernández liderava a liga espanhola a par do eterno rival Deportivo da Corunha (que viria a vencê-la).

Sentámo-nos numa esquina atrás da baliza, separados por uma grade das escadas por onde os adeptos da casa subiam para o segundo anel. Um deles gesticulou-nos um 4-0. Rimo-nos, de novo, e respondemos que devia estar louco. Não estava.

O ala direito Karpin, hoje seleccionador da Rússia, marcou o penálti que iniciou a goleada

O ala direito Karpin, hoje seleccionador da Rússia, marcou o penálti que iniciou a goleada

S.Sas-El Correo Gallego

Após o primeiro quarto de hora, Andrade, especialista na arte de ceifar, cortou pela raiz as dúvidas e as pernas de um opositor. Valeriy Karpin converteu o penálti que seria o primeiro golpe de um festival de pancada capitaneado pelo seu compatriota Aleksandr Mostovoi. O que leva esta história a um rápido flashback, de novo com o número fatídico e o seu mau presságio.

Sete anos antes, teria eu nove, decidi escolher um novo jogador favorito porque Rui Águas se mudara para o FC Porto. Escolhi Mostovoi, não sei se pela pinta, pelo toque de bola ou apenas por ser russo, já que os 17 jogos e dois golos no Benfica não davam para erguer um ídolo. Foi por isso com mágoa, mas também com orgulho pelo meu faro, que vi o camisola 10 a espancar a sua ex-equipa, escudado por dois guarda-costas de luxo: o incansável Makelele e Giovanella, brasileiro que brilhara no Belenenses e no Tirsense (o meu outro clube).

Na frente, o talentoso extremo Gustavo Lopez e outro argentino menos conhecido, o ponta-delança Mario Turdó, ajudados pelas investidas do pujante lateral-esquerdo Juanfran, surravam uma defesa benfiquista que até tinha um Ronaldo, mas não dos que marcam golos: ao intervalo, eram já quatro os sofridos. Oxalá o adepto que acenara esse prognóstico tivesse mais olho do que o grupo das calças baixadas.

Começou a segunda parte e o Benfica teve uma sucessão de pontapés de canto do nosso lado. A bancada acordou e urrou pela equipa, ouviu-se que ainda era possível e comentámos que só o nosso clube podia gerar tamanha crença mesmo a ser goleado. Canto despachado, contra-ataque e… estava feito o quinto. Minutos depois o sexto, logo a seguir o sétimo, a faltar ainda meia-hora. O Benfica estava de cócoras e o Celta de traseira virada para a Lua.

Foi a segunda maior derrota de sempre do Benfica (em 1933, perdeu 8-0 contra o FC Porto). Na defesa jogaram Andrade, Rojas, Ronaldo e Paulo Madeira

Foi a segunda maior derrota de sempre do Benfica (em 1933, perdeu 8-0 contra o FC Porto). Na defesa jogaram Andrade, Rojas, Ronaldo e Paulo Madeira

S.Sas-El Correo Gallego

Centenas de benfiquistas começaram a sair, entre os quais parte dos meus amigos, que foram beber cañas e comer pinchos (eu e outros dois duros resistimos). Lá fora, voltaram a ver Vale e Azevedo, desta vez a tentar escapulir-se antes do fim do jogo para não enfrentar os adeptos, vermelhos de raiva. O meu amigo mais descarado debruçou-se na janela do carro do presidente e deu-lhe uma palmadinha no rosto: "Como é, Vale? Isto não pode ser assim". Embalado, ainda falou para as câmaras da TV Galiza: "paguei cinco [contos] e levo sete!". Muito pagaria eu para ver essa reportagem.

Na ronda seguinte da Uefa, o Celta eliminaria a Juventus de Van der Sar, Ferrara, Zambrotta, Conte, Davids, Inzaghi, Zidane ou Del Piero. Para supressa, cairia no quartos-de-final com o Lens

Na ronda seguinte da Uefa, o Celta eliminaria a Juventus de Van der Sar, Ferrara, Zambrotta, Conte, Davids, Inzaghi, Zidane ou Del Piero. Para supressa, cairia no quartos-de-final com o Lens

S.Sas-El Correo Gallego

O Celta teve piedade e o resto do jogo foi já de recobro da tareia, tal como a viagem de regresso. Já não nos rimos. O Quim Barreiros que na ida berrava no rádio do autocarro foi substituído pelo silêncio. Um fanático alcunhado de Vedeta, que entrara em Vigo a saudar toda a gente à janela — "ei, hombre, ei, muchacha, Benfica!" — chorou até casa, enrolado numa bandeira.

«O Celta deixa o Benfica feito um farrapo», titulava o jornal galego La Región a 26 de Novembro

«O Celta deixa o Benfica feito um farrapo», titulava o jornal galego La Región a 26 de Novembro

Biblioteca Pública de Ourense Nós

No dia seguinte cheguei atrasado ao liceu. Ao entrar na aula de Língua Portuguesa, toda a turma me aplaudiu. A encenação havia sido preparada pela professora, portista fervorosa, que se aproximou para me dar um beijo na cabeça e sussurrar: "deixa lá". Seguiram-se muitos recreios a ouvir a pergunta "e quem é o nosso amigo?", respondida em coro: "é o Celta de Vigo!".

Passadas duas semanas, no dia da segunda-volta, comentei com um dos companheiros de viagem que, se nos primeiros cinco minutos o Benfica marcasse e alguém do Celta fosse expulso, quem sabe se não havia um milagre. Ele rematou-me a crença com um "tu estás louco". O jogo ficaria 1-1, com o Benfica a empatar no final graças a um golo na própria baliza dos visitantes.

Passados 22 anos, a história ainda dava voltas. Dei por mim a viver em Vigo com uma galega que até à adolescência foi adepta celtista (agora odeia o futebol). Às vezes, a nossa filha dorme com uma camisola do Celta que lhe ofereceram. O meu rancor pelo clube celeste passou a simpatia (moderada) e desejo que um dia se qualifique para a Champions. Quem sabe se não posso ver uma desforra?