Crónica de Jogo

Desta vez, no US Open, não vimos o melhor de ‘Sincaraz’. Só o de Carlos, o novo número 1 do ténis

Desta vez, no US Open, não vimos o melhor de ‘Sincaraz’. Só o de Carlos, o novo número 1 do ténis
Clive Brunskill

Em Nova Iorque nada houve da maratona épica de Paris, nem sequer do nível amainado, mas ainda assim incrível, de Londres. Na final do US Open, a terceira seguida de um Grand Slam que partilharam este ano, Carlos Alcaraz e Jannik Sinner mostraram fogachos do seu melhor, mas à vez, quase nunca em simultâneo. Prevaleceu o espanhol em quatro parciais, para conquistar o seu sexto major aos 22 anos e garantir o regresso ao trono do ranking mundial

Então cá estamos, de novo, testemunhas do duopólio de opulência que sucedeu ao trio ditatorial. As raquetes, está visto, apreciam ter eras em que um restrito número de talentos usurpa tudo em seu proveito. No bling-bling de Nova Iorque, debaixo dos holofotes que iluminam o court, também os contornos das faces de celebridades várias para quem o US Open é íman, era o culminar da rivalidade omnipotente: 23 anos depois, a final de um Grand Slam não tinha Djokovic, Nadal ou Federer e repetia, pela primeira vez num ano civil, os mesmos jogadores que decidiram os dois majors anteriores. Para quem é humano e faz vida do ténis, deve fatigar coincidir com nascidos na estratosfera.

Deveras terá cansado a quem pagou um caro bilhete para assistir à final no Arthur Ashe Stadium lidar com as filas à entrada e os controlos apertados, à aeroporto, causados pela presença de Donald Trump, já refastelado lá dentro, no camarote da Rolex, enquanto milhares de plebeus aguentavam a acrescida morosidade por “questões de segurança” devido à presença do presidente dos EUA. Aceitou o convite, por certo inocente, da patrocinadora do torneio e marca de relógios da Suíça, país a que o homem com escritório na Sala Oval da Casa Branca impôs uma tarifa de 39%, e o US Open atrasou o início da final em quase 50 minutos para atenuar as consequências.

Uma delas, enfim, é só chegarmos agora ao bendito ténis que Jannik Sinner e Carlos Alcaraz praticam, em especial quando se cruzam, tal são as faíscas, o transe a que submetem a bola, supersónica a ir de um lado ao outro da rede com as marretas que têm nas raquetes. Já sabemos dos opostos, o laranja de cabelo que importa tem a sua frieza, mecânica e robotização de gestos, o espanhol que surgiu de cabeça rapada em Nova Iorque é fogo, efusão e vasta palete de emoções. Foi ele, no arranque, a quebrar o serviço do italiano logo a abrir, prevalecendo num arranque assente na brutidão das pancadas de ambos.

Seria o embalo para a surpresa de o primeiro set demorar um espirro. Não tardou um sereno ‘Carlitos’, paciente a escolher as suas armas, a impor-se contra um Sinner errático, falível em situações longe de serem limite, precipitado a tentar acelerações nos pontos ou a fazer o espanhol varrer o fundo do court. Intratável a servir como em todo o torneio, Alcaraz pressionava o italiano em qualquer bola e ele, sôfrego com o constante aperto ao contrário de estimulado, como é costume, acumulava erros impróprios. Ia à rede desacertar no campo, por um palmo, bolas dóceis para aniquilar o adversário. Punha na rede amortis simples, para fechar o ponto e sofrer o segundo break.

Em 37 minutos, o espanhol cerrava o punho com um 6-2, mandão no jogo, estável durante os pontos, despido da impaciência que tanto o faz descolar para pancadas formidáveis como o trai ao tentar algo fantástico quando se vê apertado. Agora não, até alquimista de desacelerações com o slice de esquerda era para conspirar o momento de voltar a acelerar a bola.

Preso na mente ou de pulso, só ao terceiro jogo do segundo parcial Sinner se encontrou, naturalmente do fundo do court. O seu elétrico vaivém paralelo à linha, martelando na bola a cada chegada, apareceu de vez na final. As chapadas de direita caíam nas linhas, as esquerdas cruzadas estrondosas faziam de Alcaraz um maratonista. O italiano já jogava, erguia punhos, retirava dividendos do seu serviço e quebrava o saque do espanhol, em branco, entrando-lhe na cabeça. As trocas de bola prolongavam-se, a arena de Flushing Meadows já presenciava o ténis de altíssima intensidade que hoje só eles alcançam.

A erupção do ruivo dos caracóis no jogo, tão incómoda para Carlos, unidimensionalizou a prática do espanhol: limitava-se, às tantas, a devolver a bola com força, atreito a aguentar e não ávido a arriscar, contrariando a sua natureza enquanto Sinner crescia na sua. Quando encurtou distâncias, para 2-4, o espanhol fechou um jogo de serviço a festejar como se tivesse embrulhado um set, fletindo o arcaboiço, enrijecendo fibras musculares. Até isso lhe parecia hercúleo, antes enganara ao pintar de fácil a tarefa de ser superior a Jannik, agora saía do delgado corpo do italiano qualquer golpe estrondoso na bola com facilidade.

Maddie Meyer

O 6-3 a favor do líder do ranking mundial há 65 semanas contradizia, do espetro oposto, a expetativa de equilíbrio. À prevalência arrasadora de Alcaraz no parcial de arranque sucedeu o atropelo das pancadas chapadas, retilíneas e consistências na forma de Sinner, não havia sinais de que Nova Iorque emularia a maratona de Paris, tão extenuante (5h29) quanto o primeiro cruzar de raquetes de ambos no US Open, então nos ‘quartos’, há três anos (5h15). A culpa poderia estar na postura sentada.

À semelhança do italiano tirolês, alguma osmose afetou ‘Carlitos’ com a ida ao banco no intervalo entre sets, houve benesses na acalmia, em parar por um momento e pensar. No retorno ao piso, o espanhol roubou o serviço ao rival, retornado a si ou a uma versão mais próxima de si, a empunhar efeitos na bola surrealistas (um smash curvilíneo aparecerá em qualquer highlight) e a ir para cima de Sinner com todos os feitios do seu arsenal. Parecia liberto, sem chocalhas, livre de hesitações, um perigo para quem tem posse de tantas armas.

Num instante engoliu jogos, punha-se em chamas, o seu dedo ia à orelha, incandescia a plateia com um tipo de espetáculo que só ele encena, mas apenas se Carlos for Alcaraz, a divertir-se como gosta, pintor renascentista e de barroco, também impressionista e líder da pop art. Foi um parcial assim, 6-1, conseguiu Jannik Sinner evitar estatelar-se de cara no piso, amparando um pouco a queda. Mantinha-se a tendência de só vermos o melhor de um tenista de cada vez.

JOHN G. MABANGLO

O quarto set seria para destoar. O jogo de serviço inicial esteve uma eternidade nas vantagens com o murciano de El Palmar a farejar o break e o ruivo de San Candido, onde Itália vê a Áustria da varanda, a aguentar indo aos píncaros das suas qualidades. Até que enfim os dois esteios com braços, pernas e pó de perlimpimpim coincidiam no sublime: foram quatro jogos de amortis, idas à rede, lobs, pancadas cruzadas, disparos fulminantes e os tenistas a correrem de um lado ao outro do campo que nem gazelas apressadas. ‘Sincaraz’ cuspia fogo, o vulcão despertava.

Mas, ao primeiro titubear de Sinner, o espanhol mordeu, fazendo ruir o seu serviço e obrigando o italiano a injetar arrojo no braço. Tinha de acelerar, arremessar mais pressão para o outro lado, arranjar forma de contrariar as percentagens elevadas de pontos que Alcaraz ia buscar ao seu primeiro serviço. Ficar no pneumático jogo do fundo do court já não bastava ao italiano se ‘Carlitos’ já mostrava a qualidade recente de gerir o poderio do seu manancial com paciência, sem ceder ao aborrecimento.

A tendência do espanhol para se querer impor, intempestivo, quando os pontos têm os jogadores equivalentes é, desde sempre, o maior sintoma da sua juventude, afinal são 22 anos, antes de tenista ainda é um rapaz, volátil mais do que temperado e a extroversão foi ingrediente que estimulou o seu jogo ser como é, farto em fogachos. Permitir-se a fases do jogo em que se impõe só com o necessário, sem querer resolver impasses indo buscar uma qualquer pancada bombástica, mostra um jovem a querer madurar. Assim susteve a reação de Jannik Sinner.

O espanhol teve dois match points no braço que se encolheu no primeiro, abrindo ligeiramente o flanco que o mordaz italiano, corajoso ainda mais, castigou com uma direitaça cruzada. No segundo, respondeu a um serviço murcho fazendo uso da sua esquerda fulminante. À terceira oportunidade surgiu o culminar do labor vindo da pré-temporada, em que Juan Carlos Ferrero o convenceu a ajustar a mecânica do seu saque para o movimento ser mais fluído. Com um às, o seu décimo na partida, fechou a final (6-4).

O abraço conviva que Sinner e Alcaraz partilharam na rede, sem melindragem aparente, selou a partilha de Grand Slams entre eles pelo segundo ano consecutivo. O espanhol conquistou o US Open outra vez, agarrou-se ao seu sexto major contra os quatro do rival, garantindo que na segunda-feira regressará ao trono da hierarquia mundial que lhe é estranho desde setembro de 2023. Quando saía do túnel para o court, dizia não estar a pensar nisso até ao entrevistador lhe perguntar, ele responder e sair lá para fora, despedido pela frase “a pressão é um privilégio”, dita por Billie Jean King e emoldurada na parede. É a última coisa que os tenistas veem antes de se mostrarem às bancadas.

Esta final, a sexta consecutiva entre eles, longe esteve de ser espampanante como a de Roland-Garros, nem à menos nivelada de Wimbledon. O atraso com que Flushing Meadows viu ação teve a consequência de o melhor de cada um quase nunca coincidir, se o torneio tivesse mostrado Donald Trump nos ecrãs do estádio mais do que um par de vezes talvez os apupos (uma vez após ser entoado o hino americano, a outra no encerramento do primeiro set) se rugissem um pouco mais, como em 2015, quando convenceram o ainda não presidente a parar com as suas aparições quase anuais.

Os tenistas viram-no, não tanto quanto se veem entre eles, só em Nova Iorque houve duas noites em que calhou irem jantar ao mesmo restaurante, “vejo-te mais a ti do que à minha família”, disse Carlos a Jannik na simpatia da entrega dos prémios. Se há distinção a enaltecer entre esta era e a prévia será a terna cumplicidade vista entre os monstros da raquete desde cedo - Federer e Nadal só a encontraram dentro dos 30, o prevalecente Djokovic apenas quando a luz dos rivais já findava. É possível haver convívio entre os melhores de uma geração.

Estarão já, também, entre os melhores da história, não é precipitação afirmá-lo nem indícios há de que 2026 não seja parecido a este 2025. A força de ‘Sincaraz’ prosseguirá, agora foi Carlos a chegar à meia-dúzia de Grand Slams com 22 anos, apenas com mais 104 dias do que Björn Borg quando o lendário sueco colecionou o mesmo número e ficou o mais novo de sempre a fazê-lo. Mais recordes haverá para o espanhol perseguir, mais paciente e brando que está a lidar com a sua queda para o aborrecimento nos jogos. Agora também os domina com paciência, não só a tentar atear fogo constantemente.

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