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Crónica de Jogo

No desespero, o Sporting tentou não ser Sporting. No final, sobreviveu ao seu abismo pelo caos absoluto

A perder desde os 10 minutos, a equipa de Rúben Amorim não sucumbiu cedo, como de costume, ao previsível plano B de bombardear a área com cruzamentos e depositar Coates por lá. O Sporting retardou essa estratégia, mas só chegou à vitória (2-1) quando se rendeu a ela, apesar da balbúrdia de confusão em que acabou o jogo: Adán foi expulso, o árbitro anulou um golo do Marítimo, houve sururu com muitos cartões amarelos e Paulinho vestiu-se de guarda-redes para ser aplaudido como nunca o foi

Diogo Pombo

TIAGO PETINGA/LUSA

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Não há, nunca haverá, estatística ou certeza numérica capaz de quantificar o que, no domínio do intangível, mais condiciona o quão bem um futebolista pode estar no jogo de futebol. A confiança, invisível mas de presença certa, afunda talentosos abaixo do seu valor e capaz é de elevar jogadores banais a gestos que não alcançam num dia comum. ‘Se eu acreditar e me sentir como o melhor dos que estão em campo, e os primeiros toques saírem bem, sentir-me-ei capaz de tudo’ é um possível resumo de como a coisa funciona. Depois, ainda no reino dos elementos não palpáveis, há a confiança coletiva que nos proporciona chegar ao Marítimo.

São 32 jornadas que a equipa da Madeira conta dentro dos lugares de despromoção ou que dão direito ao play-off da derradeira oportunidade para a evitar, já estiveram oito rondas no último lugar, 13 no penúltimo e estão há 11 no antepenúltimo. É todo um campeonato a respirar o ar denso e pesado das catacumbas, a perder muito e ganhar pouco, a acumular uma energia que costuma ruir o ânimo de um coletivo à mínima contrariedade que lhe aconteça em jogo sem que seja preciso haver sequer uma troca de olhares entre jogadores. Entrado em Alvalade na 16.ª posição com três jogos em falta, o Marítimo tudo tinha para se apresentar assim, mas não.

Aos 10 minutos marcou, eficaz e matreiro, mais do que isso foi simples após a fricção entre os corpos de Félix Correia e de Sebastián Coates a abordarem uma bola rasteira provocar um encosto que desequilibrou o uruguaio e favoreceu o português para ele se virar, olhar e lançar a corrida de Vítor Costa, na esquerda, para o canhoto rematar de pronto. Tão cedo, quem tem morado na sub-cave do campeonato, a fazer pela vida para sobreviver, ganhava no quintal de quem há menos de um mês lutava para chegar a uma meia-final europeia.

Seria fácil aplicar o chavão de o futebol ser isto, um jogo de imperfeitos, imprevisibilidades e imprevistos, porque o jogo até pediu isso na calma com que Zainadine e os outros dois centrais do Marítimo queriam sair a jogar curto, da área, mesmo se cada jogador tivesse pressionado em cima; na preferência da equipa em ligar passes rasteiros e no pé, buscando o apoio frontal de André Vidigal ou Félix; na maneira como, mesmo recatados junto à sua área, os madeirenses queriam avançar no campo pela certa (a procura pelos pés de Bruno Xadas uma constante) e não com chutões para axotar o bola. O elogio maior é constatar que o Marítimo não pareceu, de todo, uma equipa que pouco tem vindo à tona esta época.

Carlos Rodrigues/Getty

Errando Coates - e quase comprometendo meia hora depois, passando de primeira, sem olhar e de costas para a pressão uma bola quase intercetada à beira da sua área -, o Sporting viu-se a perseguir mais uma desvantagem em casa, nada inédito, mas tudo, daí para a frente, a repetir-se como em transtornos passados. Com um estaticismo posicional a qualquer jogada, onde cada um se mantinha no seu sítio, à espera de algo, os leões abusaram dos cruzamentos (18 até ao intervalo) como forma de chegar à área, raramente tiveram receções entre linhas e só acertaram um remate na baliza em 45 minutos, meigo e inofensivo. Foi de Paulinho, o retornado avançado.

Essa queda por colocar bolas no retângulo que rodeia a baliza, sintoma muito de Sporting versão-Amorim, teve alguma filtragem na segunda parte, apesar da entrada de Nuno Santos (o melhor ‘cruzador’ do plantel) e de Trincão ser experimentado a ala antes de a experiência motivar à sua troca por Fatawu, a maior das incógnitas. Colocar o ganês que já levou a crueza do seu futebol a oito competições esta época (já se repartiu, entre outras, pela I Liga, na Champions, na Liga Europa, na Youth League ou na Liga 3) na ala direita denotava a intenção de ter desequilíbrio driblador e cadência para o remata ao invés de depositar bolas na área.

Atirar Gonçalo Inácio e Morita para campo também aparentou uma vontade em abanar pelas ideias com bola, pela magicação consertada de jogadas e não via a previsibilidade do bombardeamento aéreo. E mesmo devagar, devagarinho, essas tentativas surgiram. Morita desdobrou-se em diagonais a rasgar os espaços entre centrais de fora e alas, Pote e Marcus Edwards já baixavam as suas posições para receberam nas costas dos adversários e Fatawu forçava o um para um na direita, só cruzando a bola se ultrapassasse algum corpo. Ugarte rematou em arco, à entrada da área, a fechar um contra-ataque, antes de Edwards bater uma bomba com mira no mesmo ângulo superior da baliza.

Ambos o tentaram ainda sem Coates na área, o predileto plano B de depositar como alvo o central que Rúben Amorim avalia como o melhor cabeceador da equipa. E tardou, bastante. Pedro Gonçalves esperou nos bolsos de espaço entre os cinco homens que o Marítimo tinha na linha defensiva, Morita continuou a desmarcar-se para criar dúvidas e arrastar atenções e só nos derradeiros 10 minutos se viu a presença do uruguaio a disparar um sinal de fumo para o ar - que se solte a previsibilidade, era hora. O central já por lá andava quando Pote, recebendo no half space entre defesas, recebeu e tirou do caminho um deles, cruzou rasteiro e Matheus Costa desviou a bola (84’) para a própria baliza.

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TIAGO PETINGA/Lusa

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TIAGO PETINGA/Lusa

Essa foi a ordem para carregar, ir com tudo, sinal para a rendição completa ao plano implementado em tantas outras noites de desespero quando a equipa tentou escapar ao abismo. Aí viu-se o Sporting previsível, a confiar no desalinhamento dos planetas que falam deste truque como o mais evitável por tantas vezes já usado, a bombear cruzamentos a preceito, alguns sem jeito, outros com alvo definido como o que detetou Paulinho a esconder-se ao segundo poste: a cabeça do avançado tocou na bola não para a baliza, mas na direção de Coates, que se esgueirou em simultâneo para as costas dos desatentos defesas. O golo redentor, aos 90’+3, surgiu da previsibilidade do já visto.

Festa de arromba se soltou, por segundos, em Alvalade, que se encheu de euforia para calar os assobios-fáceis que toda uma segunda parte despertou como em outros tempos menos estáveis no clube. O caso pareceu resolvido, parecia não haver energia para uma reação nos corpos combalidos do Marítimo, já tão sovados por este campeonato, não tão tarde. Mas houve, a réstia de luz apareceu quando Gonçalo Inácio e Nuno Santos mastigaram uma bola recuperada perto da linha de fundo e o segundo, protegendo-a da pressão, levou um encosto de Cláudio Winck e caiu.

Tombado na relva, uma série de acontecimentos extraordinariamente caóticos foi engatilhada, a qual se pode resumir assim:

O lateral brasileiro levou a bola, cruzou-a rasteira, Riascos rematou-a para golo e enquanto os madeirenses esbracejavam, em rejubilo, os do Sporting montaram um cerco ao árbitro e a Adán, que foi o primeiro a chegar-lhe perto, a tocar-lhe e a refilar a um palmo dele porque vira o seu assistente a levantar a bandeirola quando Nuno Santos caiu; dando uso ao braço e após o esticar, várias vezes, com o cartão amarelo em punho e mostrando o seu irmão vermelho ao guarda-redes do Sporting, o dono do apito foi privar com o detentor da bandeira, depois o VAR chamou-o e de seguida anulou o golo, sem que fosse possível reverter os empurrões, encostos e todo o sururu que engordou em quase 10 minutos os descontos.

Para o tempo que ainda houve, Paulinhou chegou-se à frente para recuar no campo, vestir as luvas de Adán e fazer número na baliza. Durante um par de minutos, as bancadas pareciam representar as hostes de um clube na farra de uma conquista e uma harmonia. E a terminar, algo intangível do futebol a mostrar-se, mesmo que mais identificável. Porque foi irónico ouvir o ruído dos aplausos, de um público a embalar um jogador e ele ser Paulinho, quiçá o rei dos mal-amados do Sporting, só por despachar dois pontapés para longe e deixar-se cair ao agarrar uma bola, à guarda-redes. Rúben Amorim bem tentou disfarçar o riso.

Os leões mantiveram a esperança de a Liga dos Campeões ainda ser alcançável. Dependem de terceiros para acabarem em terceiro - e, apesar dos sucessos e títulos recentes, continuam a cortejar o caos de perto como algo a que a consciência coletiva de um clube sucumbe ao mínimo golpe de asa. E isto também conta como um intangível dificilmente explicável.