Que nos perdoem o dogma: se qualquer coisa bem feita for feita por um esquerdino, é mais bela. Esta é uma daquelas verdades absolutas do futebol que dificilmente é questionável. Talvez o quadro de Diego nesta secretária denuncie ligeiramente a crença religiosa. Sejamos objetivos: Nuno Santos ainda não o revelou, mas tem certamente um pacto com algum sindicato que não pertence a este planeta. Um dia saberemos o que deu em troca ou o que prometeu a sabe-se lá que divindade, ou o que sacrificou, para ser abençoado com a autoria dos golos mais belos do campeonato. Há uns tempos foi uma letra. Até fomos a correr saber quantas vezes usava o pé esquerdo e o pé direito para fazer mossa nas balizas. Descobrimos que, entre 2016 e março de 2023, só usou a bota fraca em oito ocasiões para rematar. A letra era portanto um recurso avisado, não era desvario ou samba.
Agora, um chapéu. Não foi bem um chapéu, foi mais do que isso, pela certeza gélida que injetou no gesto. Foi como se, depois de olhar para o horizonte para antecipar a inutilidade do guarda-redes, estivesse a picar gelo com a bota canhota. Tac. Foi um toque seco, quase perverso. Astúcia, manha. A bola, perante aquele delirante atrevimento, preferiu nem dar muitas voltas no ar para não enjoar durante a viagem para poder desfrutar daquele pedaço de revolução majestosa. Que grandeza pode ter um futebolista. É aconchegante quando fazem coisas difíceis, não é?
O Sporting ganhou esta noite em Paços de Ferreira, por 4-0, com golos de Marafona na própria baliza, Nuno Santos, Francisco Trincão e Youssef Chermiti. O primeiro golo da noite foi uma tragédia digna de quem tem problemas na vida. Em penúltimo lugar, só faltava mesmo ao Paços de César Peixoto, normalmente corajoso a querer jogar desde trás, ver uma troca de bola entre Marafona e Luiz Carlos sair torta, bater no poste e depois caprichosamente tocar no pé do afobado e alarmado Marafona, entrando na baliza. Infelicidade, um soco no estômago dos infelizes.
Os visitantes entraram muito bem no jogo. Logo aos 40 segundos, depois de uma viagem da bola da direita para a esquerda, onde seria sempre muito solicitado Nuno Santos, Pedro Gonçalves esteve pertíssimo do golo, depois do defesa Maracás desviar a bola e quase trair o guarda-redes. Logo a seguir, Diomande falhou um golo cantado a dois metros da linha de golo.

MANUEL FERNANDO ARAUJO
O ritmo era baixo ou talvez seja uma ilusão pela facilidade com que o Sporting trocava a bola com uma ligeireza assombrosa. Os leões controlavam tudo, mesmo num ritmo lento, e saíam da pressão mole e leve dos de amarelo com demasiada facilidade. É certo que é admirável que uma equipa queira sempre jogar bom futebol ou que tente chegar à frente trocando de pé para pé, mas surpreende a falta de agressividade de quem já não precisa de binóculos para ver a II Liga, para onde já foram promovidos União de Leiria e Belenenses.
O Paços, justiça seja feita, teve bons momentos com bola, mas mais do ponto de vista estético, técnico e da manutenção da posse de bola, ou seja, não criou perigo para Antonio Adán, com exceção para um lance finalizado por Alexandre Guedes, o tal avançado que fez dois golos naquela tarde no Jamor, em 2018, a este mesmo adversário na final da Taça de Portugal. Ver Nicolás Gaitán, se houver a capacidade para esquecer o que foi e o que produzia num campo de futebol, ainda é um deleite. O argentino assinou o 200.º jogo no nosso campeonato.
Impiedoso, o regulamento entregou a Marafona o golo na própria, mas esse infortúnio não afundou o guarda-redes, que teve uma mão cheia de boas defesas. Continuava demasiado fácil para o Sporting criar e jogar à vontadinha. Rúben Amorim, que viu a equipa superar os 100 golos na temporada, vai aproveitando para experimentar variantes: no começo das jogadas, Héctor Bellerín ficava na linha de 4 com Sebastián Coates, Diomande e Gonçalo Inácio, um trio que teve uma das noites mais tranquilas da carreira; Nuno Santos tinha ordem de soltura neste desenho.
Logo aos 10 minutos da segunda parte, César Peixoto trocou três jogadores. Faltava chispa. Rui Pires aceitou o desafio e no primeiro duelo mordeu ferozmente Manuel Ugarte, que cumpriu mais um jogo de qualidade, assim como o relógio Hidemasa Morita. Não há por aqui apologia das faltas, mas faltava e faltou sempre agressividade ao Paços. César Peixoto diria o mesmo na flash interview logo a seguir à partida, garantindo que não reconheceu a equipa em campo.
A arte, essa abençoada maravilha, estava do outro lado. Pedro Gonçalves, discreto mas qual formiguinha sempre a tratar de ajudar a equipa, descobriu Francisco Trincão já na área. De costas, o canhoto (pois claro) recebeu em rotação e trocou as voltas aos brandos Nuno Lima e Rui Pires. Já de frente para a baliza, chutou com vontade e celebrou o 3-0. O esquerdino ex-Barcelona vai crescendo neste grupo e ofereceu uma noite de futebol muito agradável e sumarenta.
A goleada parecia inevitável como o frio no inverno. Mateo Tanlongo, Arthur Gomes, cheio de ginga, e Chermiti tentaram. E o inverno chegou mesmo à capital do móvel, já depois da hora, quando o jovem avançado tentou mais uma vez. Arthur Gomes cruzou da esquerda, Chermiti, como um 9, empurrou em carrinho. É pesado para os homens da casa, mas não é injusto. As contas também gelam as entranhas das gentes de Paços: são 21 derrotas em 31 jogos, o penúltimo lugar da tabela, apenas com mais um ponto do que o último classificado, o Santa Clara. A vida está difícil.
Já o Sporting, com a derrota do Sp. Braga na Luz, encurtou a distância para o terceiro lugar. São agora apenas quatro pontos. Os próximos episódios desenrolam-se contra Marítimo, Benfica e Vizela.