Chamem-lhe ‘parvo’, chamem, mas Rúben Amorim é parvo nenhum. Bem-falante e um assertivo comunicador, com o dom de dizer as coisas certas no momento certo e com a certeza da falta de pudores, qualidades banalmente encapsuladas na descrição “tem carisma”, ele avisou quem quisesse. Ainda a quente, a ter que temperar as emoções, disse em Turim, mal acabou a desfeita imposta ao Sporting pela Juventus, que todos teriam “de ser muito inteligentes” dali por uma semana, quando a Alvalade chegasse uma equipa italiana de vantagem no bolso e contar com a pressa do carteirista.
E quem diz inteligência, diz ratice.
Apressado, Ricardo Esgaio nem encostou as pestanas umas nas outras quando, já no meio-campo adversário mas fora do campo, marcou rapidamente um lançamento lateral na direita para Marcus Edwards, o mais malandro dos jogadores da equipa. Em corrida, o inglês executou um dos seus pára-arranca habituais, o baixo centro de gravidade desmontou Alex Sandro e entrou na área para cruzar a bola. Foi desviada para o poste e o ressalto deixou-a pertença de ninguém, portanto Rabiot tentou reclamá-la, mas Ugarte antecipou-se. Cedo (18’) o Sporting teve um penálti que o próprio Edwards converteu e, mal a bola entrou, três ou quatro companheiros urgiram-se a ir buscar a bola à baliza.
Mais matutina já tinha sido a Juventus. Era esse o problema que inquietou os leões e cedo lhes deu a evitável pressa, tão cedo e já com o prejuízo engordado, porque noutro canto a dar toques ao malogrado canto em Turim, onde toques atabalhoados, ressaltos e caos deram o golo aos italianos, novos toques desastrados (na cabeça de Coates), ressaltos sem tino (nas costas de Morita) e caóticas intervenções (de Danilo) encadearam a bola nos acontecimentos que a deixou à mercê de Rabiot. O francês só teve ser pronto a rematá-la (12’) para agravar a vida aos anfitriões.
E o estádio, essa entidade coletiva e abstrata a quem Rúben Amorim estendera o pedido por inteligência, calou-se por segundos. O silêncio vindo do desânimo de um golo sofrido é mais pesado do que outro qualquer.
Mas, nem em meio minuto, o ser que não existe e que é mais uma consciência comum ressuscitou, voltando aos bons barulhos, não aos assobios dados a passes para o lado ou aos sibilados por não verem no lá em baixo racional o que imaginam lá em cima nas cabeças emotivas. E a equipa do Sporting serenou-se, ou melhor, não deixou de estar serena e foi atrás do empate que lhe apareceu fruto de ter de caçar com o rato da matreirice por não ter o gato de um resultado favorável. Só depois, de novo igualados em golos, os leões encetaram um jogo algo parecido com o de Turim.
Agora com o pulmão senciente de Ugarte ao lado de Morita, o Sporting beneficiava das recuperações de bola altas do uruguaio, por um par de vezes armado em ladrão no meio-campo italiano ou a acorrer a dobras feitas a um dos centrais de fora, sobretudo nas costas Gonçalo Inácio. O médio rematou de longe antes de Diomande, num canto, desviar de cabeça uma tentativa que rasou o poste esquerdo (35’) da baliza de Szczesny, guarda-redes que não era forçado a tantos trabalhos como na primeira partida. Por oposição, nem Chiesa ou Di María, os desequelibradores da Juventus nas alas, agitavam os ataques italianos com as suas intervenções.




Era nas receções entre linhas de Pedro Gonçalves, em recuos constantes para longe dos dois centrais, que o Sporting farejava o ouro, cujo brilho tardava a guiar a equipa devido a alguma precipitação dos jogadores quando achavam os espaços livres - solto de marcação, viu-se Pote a errar ao jogo de primeira e Edwards, livrando-se de chatices com um primeiro drible, tardou em decidir um par de jogadas à entrada da área com toques a mais. À esperteza do português a jogar com os espaços e ao espernear das fintas do inglês uniu-se o critério no passe de Morita, de novo omnipresente a lidar com Rabiot e Locatelli.
Não se viu até ao intervalo a vertigem nem o domínio que o Sporting exercera, durante muitos períodos, em Turim. Era natural, mesmo com o resultado antipático os jogadores não tinham tanto tempo para amainar erros, imprudências ou precipitações que cometessem, mas algo misterioso parecia haver nos cantos - outro ainda trouxe um estranho vórtex em que os mesmos ressaltos e cortes falhados e segundas bolas (39’) desesperam o Sporting a ter de bloquear sucessivos pontapés nas redondezas da área.
A Juventus rondou o retângulo protegido pelos leões com outro afinco no retornou ao campo, durante 15 minutos foram os visitantes a parecerem os lesados. Pressionando mais alto e com Miretti a ser o terceiro médio que explorava as costas de Ugarte e Morita, os italianos ligaram um par de jogadas em que lançaram alguém até à linha de fundo para empurrarem a última linha do Sporting contra a própria baliza e conspirarem no contrapé.
Primeiro, fizeram um roubo suceder a um roubo quando Di María adivinhou a ideia de Morita, o japonês quis lançar um contra-ataque e o argentino cortou a intenção, lançando Cuadrado na direita; o colombiano picou a bola um pouco demais para trás, não conseguindo a cabeça de Vlahovic acertar (55’) no remate. Depois, uma posse de bola trabalhada com paciência fez Miretti ligar-se ao mesmo Cuadrado, que voltou a cruzar atrasado e agora rasteiro; só Diomande se intrometeu entre o remate (57’) do avançado sérvio e o alvo. Os italianos não queriam esperar no conforto do golo a mais e ver o que sucederia.
Inteligência também é isso, fazer pela sorte em vez de confiar nela.
O encher o peito de ar da Juventus cortou o ímpeto do Sporting, que andou à sua procura na segunda parte sem lhe achar a companhia e convencê-la a ficar: os trabalhos a que eram chamados na sua área levava os médios a não chegarem tão rápido perto da outra e as posses de bola da equipa viviam menos tempo, por falta de opções de passe oferecidas ao incógnito Trincão (foi ele o mais usado como referência para os centrais), ao redundante com o tempo Edwards e ao Pote que não via baliza. Foi o português a disparar o primeiro remate na baliza dos leões pós-descanso, só aos 74’, muito de longe e inofensivo nas mãos de Szczesny.



Se aparecesse, a redenção coletiva do Sporting haveria de surgir num remate, às vezes a fortuna guarda ressaltos, desvios e atrapalhações como em Turim, mas do remate se espera o golo no futebol e de seguido um houve que redimiria um homem de cometer o pecado de ser o jogador que é, porque nenhum mal cometeu. Quando Edwards, de primeira e aberto na direita, tocou na corrida de Ricardo Esgaio pelo centro, uma dos tais desvarios atrapalhados de Danilo apareceu e um estádio levantou-se com o suspense de ver a isolar-se o jogador que esse estádio já assobiou, simplesmente, por não gostar dele.
E lá foi Esgaio, cavalgando na feiura que os adeptos lhe colariam se fosse um pato, a correr pela área e com mira na baliza, só com o guarda-redes à frente e o bruá, não o apupo, a acompanhá-lo, a botar força no pé direito para bater na bola que explodiu pouco por cima da barra. Sobrava quarto de hora no relógio e Alvalade descobria o som de uma redenção não consumada - foi oco, como se milhares de conversas de circunstância ao balcão de uma taberna estivessem a ser faladas em simultâneo.
No restante tempo, apesar de um míssil disparado por Cuadrado a fechar uma transição rápida, a Juventus escusou-se a atacar, não quis mais ver a baliza. Preferiu resguardar-se para ganhar enquanto o Sporting tentava jogar para vencer, um destino pode ter caminhos diferentes. Com uma catrefada de corpos a cobrir a área, todo um adversário encavalitado no seu derradeiro finca-pé, aos leões faltou repercutir ameaças por mais jogadores, o habitual do visto esta época. A inspiração de Marcus Edwards pode ser genial, mas é finita, e às tentativas do inglês, que insistiu e carregou e forçou momentos de drible, faltaram instrumentistas a tocarem as mesmas notas em vez de mais corpos à espera na área.
Quando um deles já era Sebastián Coates, mesmo estando nele centrada a previsibilidade de onde poderia vir o perigo, o canhoto encarou um adversário, atacou-o, enganou-o até à linha de fundo e cruzou ao de leve para trás, onde estava quem Rúben Amorim quer sempre na área quando o Sporting está magro de golos. A bola foi para o pé direito do “melhor cabeceador” da equipa. A três, quatro metros da baliza escancarada, o uruguaio falhou, aos 88’. Quando o cruzamento veio do outro lado, curvado por Arthur Gomes aos 90’, o capitão do Sporting, agora a um, dois metros do objetivo, fez um desvio e não um remate. Como em Turim, a proximidade ao alvo tremelicou a eficácia na finalização.
Não tão superior como em Itália, o Sporting pareceu jogar o mesmo jogo duas vezes e repetir-se nas virtudes, mais ainda nos erros. A moralidade das vitórias não conseguidas é o pior dos condimentos para uma derrota e o balanço de uma eliminação nos ‘quartos’ da Liga Europa, com 180 minutos feitos como o foram contra a Juventus, terá tanto de inteligente como de simples: a equipa jogou para ser dominante, mas falhou nos momentos-chave em ambas as áreas. A estrelinha de outrora deu origem à escuridão.