Impressiona a pegada que dois canhotos estimadores da bola, que a fazem respirar fundo e sentir o ar fresco a cada toque, têm numa equipa de futebol. Não é, simplesmente, pelo pé dominante ser o esquerdo, embora haja um peso no olhar humano quando se vê um esquerdino a sublimar-se no desporto: no futebol inventado por bípedes a quem uma bola deveria atrapalhar, a lei das minorias dá aos jogadores canhotos uma doçura intangível, algo mais que arregala a vista. Ao serem bons tratadores da bola, tomando o seu tempo com ela, Alan Ruiz e David Simão caem suavemente no olhar.
Eles são dois e preenchem várias costelas do surpreendente e ordenado Arouca, de peito feito no quinto lugar do campeonato, que visita Alvalade seguro de si em posse. Cada tentativa de saída da sua área é uma procura de apoios frontais, de combinações entre dois jogadores para libertarem o terceiro homem e passes curtos, um estilo de assunção da pressão para jogar com, para e dentro dela. Nos primeiros 50 metros de campo e nos seguintes, tarde ou cedo, surgiam o argentino e o português, quase sempre umbilicalmente ligados por um cordão invisível porque, no futebol, os semelhantes atraem-se.
O Arouca é carinhoso para com a bola com o tronco reto e a cabeça erguida do português, facilitador de tabelas por todo o campo, e o estilo molengão do argentino antigo morador de Alvalade, onde ambos ordenam as jogadas de um conjunto que se quer prolongar com a bola, mas que vê pouca baliza por alguma falta de aceleração de passes e de gente a lesar a linha defensiva do Sporting com desmarcações nas costas. A equipa de um golo sofrido na última meia dúzia de jogos carecia de aproximações à área contrária, mas condicionava muito os anfitriões perto da sua.
Com uma estratégia sem bola semelhante ao que muitos adotam frente ao Sporting, controlando a entrada da área com uma linha de cinco, às vezes seis, para ter mais corpos e menos distância entre eles nos espaços pelo qual os leões salivam com Rúben Amorim, o Arouca fechava-se num bloco baixo e deixava três médios a protegerem o miolo do campo. Deixou o Sporting recriar-se com passes entre ala e extremo, não se importou em ver os centrais avançarem com bola (infrutíferos, pois ninguém saltava na pressão) e limitou-se a controlar as desmarcações de Youssef Chermiti, o singelo gastador de energia em ataques à profundidade.
E isso, no Sporting e perante uma organização defensiva dessas, é pouco. Se a descrição se aplicou ao adolescente, não, porque é cedíssimo, ele é novo, quase imberbe na I Liga e por mais que tenha um treinador que recorde essa evidência para fora, os remates que o avançado não faz por querer dar mais um toque com o pé direito ao invés de logo usar o esquerdo (2’), por deixar bater na perna sem reagir (14’) ou por chegar atrasado à chamada (22’) de Arthur Gomes, o atacante que se pretende a desequilibrar e finta para evadir, não para ultrapassar. Quando o brasileiro cruza para esse remate, é lançado em corrida por um passe picado por Diomande. É a única jogada com intenção e perigo que ligam na primeira parte.

PATRICIA DE MELO MOREIRA/Getty
O resto era lentidão nas trocas de bola e redundância de jogo pelas laterais, onde não tinha Marcus Edwards, driblador por natureza a quem uma gastroenterite ataca, deixando a responsabilidade para Francisco Trincão, preso a uma das suas ocasionais noites de desaparecimento em combate. O Sporting é previsível, faz-se refém dos cruzamentos porque sim, mas tem a bênção da bola tocar no braço do central Galovic, com ele de costas, quando Chermiti recebe de peito uma bola na área. O penálti serviu para o tradicional passe de Pedro Gonçalves à baliza ser defendido (35’) por De Arruabarrena.
Os ocasionais assobios do impaciente público de Alvalade já chilrearam com outro esforço pouco antes do intervalo, quando uma saída rápida do Arouca pela direita procura o pé de Alan Ruiz. O argentino pôs os olhos na área e cortou para lá a bola que o tranquilo Diomande, ainda ontem a fazer pela vida na II Liga, dirigir um corte para trás das costas que estavam viradas à própria baliza: Antony recolheu o desnorte, evadiu o desespero de Coates e fintou Adán para um golo (38’). Ver Morita com os olhos cravados num tablet, sentado no banco a escutar instruções de um adjunto de Rúben Amorim ao intervalo, era também previsível.
A cabeça do japonês de cabelos arruivados socou a bola, num canto, contra a barra, estremecendo a baliza e o público com algum entusiasmo (54’), mas do que carecia o Sporting era da matéria que compõe a massa cinzenta do seu cérebro. Tão próximos os médios do Arouca estavam dos defesas que os espaços entre linhas escasseavam, além de jogadores com coragem para pedir a bola nesse aperto era necessário quem ousasse arriscar passes por dentro e não só por fora, como o que voltou a lançar Arthur pela direita, em velocidade.
O brasileiro, contra-movimentando-se com um sprint no espaço enquanto o extremo do seu lado recuava, cruzou atrasado para Nuno Santos obrigar De Arruabarrena a uma parada vistosa, por instinto (57’), pouco antes de um remate de Chermiti ser, por fim, a imagem do perigo: num livre cruzado pelo ar, cabeceou a bola para trás e contra o poste (62’). O reencontro com o ferro sugeria uma reação. O visto, porém, era o revisto, não arranjava o Sporting maneira de variar os seus ataques à medida que o Arouca ia comprimindo ainda mais o seu bloco junto à área.
Ainda que não tanto, a lentidão de bola continuou a invadir qualquer jogada e a carência de futebolistas que tirassem adversários da frente - neste aspeto, a dependência em Edwards é evidente - fez até que o destaque fosse Diomande, o central pela direita, quando avançada meio-campo dentro para participar nos ataques. Haver Rochinha em campo cedo no jogo (entrou aos 59’) incutiu cadência para o um-para-um, mas, encostado à ala esquerda, quando o português se livrou de alguém era uma arma com pólvora, mas sem longo alcance à baliza. Quando Coates foi resgatado para o velho plano B e posto na área, pelos 70’, os cruzamentos à mínima oportunidade tornaram-se regra.



O Arouca passou a resistir e subsistir mais ainda a partir daí, absorto na prioridade de acautelar a vantagem - preferia ter homens encolhidos atrás a tentar retirar algo mais de separar as peças para atacar. E o Sporting insistiu, forçou, cruzou a bola, apressou-se a cruzá-la e já nem os médios se abeiravam da jogada quando ia para uma ala, também eles sabia o que iria acontecer. À segunda época de adversários a protegerem-se contra os leões nestes moldes, a equipa de Rúben Amorim marrou com uma previsibilidade muito vista noutras partidas até Rochinha divergir da regra.
Desequilibrador de bola presa ao pé direito, o atacante teve uma nesga para cruzar, mas não, às urtigas mandou aquilo em que o Sporting já se tornara e passou, curta e rasteira, a bola a Pote, que na área a recebeu para vestir uma cueca a um adversário. A cobertura do central João Basso derrubou-o depois para outro penálti lhe dar uma segunda oportunidade e o golo já surgir, tarde (87’) ou nem por isso, porque houve 11 minutos de descontos férteis a outra abordagem. Mas a pressa e o desespero a altas horas do jogo embaciam qualquer um.
Nenhum cruzamento originou um remate, a pressa enrijeceu-se contra qualquer esperança de uma jogada perfeita, só o caos ou a fortuna pareceram obreiras de algo quando o enésimo cruzamento, este de Trincão, foi desviado por um defesa do Arouca para a própria baliza, dando o canto que ao fim de não sei quantos ressaltos pediu outra bola cruzada para Coates a desviar. Outra vez, acercou-se do poste, não mais do que isso. Já Rúben Amorim desaparecera, expulso por alguma ingerência no banco, quando o guarda-redes De Arruabarrena até saía a cruzamentos para lá da marca de penálti, tão expectável que eram.
O empate foi um embate de frente e com estrondo do Sporting contra uma muralha montada pelo Arouca, coeso e organizado defensivamente, mas, e sobretudo, a bateram numa parede à qual conhecem o sabor da cal. A incapacidade em desmontar blocos baixos colados, especificamente, para encravarem as intenções prediletas da equipa é cantiga já ouvida e a rendição aos cruzamentos e à sua repetição surpreende ninguém por esta altura. O terceiro lugar do SC Braga fica a sete pontos com seis jornadas em falta.
E descortinar como o Sporting poderá recuperá-los é mais imprevisível do que era adivinhar, numa partida que durou até aos 111 minutos, que o outrora pachorrento Alan Ruiz ficaria em campo para os viver a todos.