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Crónica de Jogo

Um déjà vu saboroso para Fábio Cardoso, um defesa que pediu autorização para usar a mítica camisola 2 do FC Porto

Os campeões nacionais bateram esta noite o Portimonense, por 1-0, no Estádio do Dragão e mantêm a distância para o Benfica nas vésperas da visita ao Estádio da Luz. Fábio Cardoso, um defesa que já marcara duas vezes ao Portimonense pelo Santa Clara, foi o herói da partida. E essa é uma boa desculpa para lembrar a história do número 2 das Antas e um diálogo com Bruno Alves

Hugo Tavares da Silva

DeFodi Images

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Quando Fábio Cardoso escolheu o número 2, convocou o lado mitológico das Antas. Afinal, “João Pinto, Jorge Costa e Bruno Alves” usaram aquela camisola, lembrou na apresentação pelo FC Porto, em julho de 2021. “Sei que é uma grande responsabilidade, mas vou estar à altura. É também o dia de nascimento da minha filha, por isso foi quase uma escolha automática”, explicou então. É certo que chegou para travar o que outros têm a coragem de fazer perante homens fardados com dragões ao peito, mas a relação deste futebolista de Águeda com o golo é curiosa.

Os primeiros golos no futebol profissional deram-se em seis dias, pelo Benfica B, contra FC Porto B e Sporting B, imagine-se. Estávamos em janeiro de 2015. Num capricho do destino é curioso observar que dois dos seis golos que fez pelo Santa Clara em 2018/19, a época mais sumarenta nesse capítulo, foram ao Portimonense. Os golos do central, na altura com a camisola 3, valeram quatro pontos para os açorianos. Esta noite Cardoso viveu um déjà vu saboroso e foi o herói que deu os três pontos ao grupo de Sérgio Conceição, que assim mantém a distância para o Benfica antes do clássico.

Com Cláudio Ramos e Manafá no 11, o FC Porto desde cedo assumiu o jogo. Quanto mais perto estavam Otávio e Pepê, mais fluido era o jogo dos senhores da casa, trata-se de um protocolo mais sedutor e imprevisível. O Portimonense até entrou bem, com Filipe Relvas a ameaçar o golo logo nos primeiros suspiros do jogo, mas depois desapareceu, limitou-se a resistir, a tentar bloquear os movimentos e as rotas da bola alheios. A estratégia não deixava dúvidas: Fahd Moufi, Park Ji-soo, Pedrão, Filipe Relvas e Moustapha Seck estacionavam à frente de Kosuke Nakamura, um homem que parou quase tudo esta noite. Na memória de Paulo Sérgio talvez estivesse o 0-7 sofrido na última visita ao Dragão.

O companheiro de Mehdi Taremi, que vai vivendo uma crise de identidade, foi Toni Martínez, substituindo o intermitente, discreto e lesionado Evanilson. O espanhol procurou fazer o que fazem os avançados e tentou atirar, numa pequena cápsula de tempo, três vezes à baliza dos de Portimão. Primeiro, desviou Park Ji-soo. A seguir, foi Nakamura a cancelar a infelicidade com uma palmada na bola. O mesmo desfecho sucedeu pouco depois.

Apesar de não se vislumbrar a técnica de tempos idos, os portistas iam dominando o jogo, havia qualidade e mobilidade, mesmo com peças que parecem estar um nível acima das suas possibilidades. O Portimonense mantinha-se inofensivo.

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O tal golo de Fábio Cardoso, aos 30’, só teve a irónica oposição de Iván Marcano. Foi um golo made in defesa e ainda por cima construído por alguns mal-amados. Manafá, que também marcou num daqueles Santa Clara-Portimonense mencionados em cima, lançou Wendell na esquerda. O canhoto brasileiro levantou com pinta para a área e Fábio Cardoso, corajoso, saltou para ser feliz e fazer outros felizes. Foi o terceiro golo do central na temporada, o terceiro de cabeça.

A seguir ao 1-0, Cláudio Ramos, a cumprir o 152.º jogo na I Liga, precipitou-se e, afastando-se muitíssimo da baliza, colocou a vantagem em xeque. Welinton Junior passou por Marcano sem piedade e a bola foi beijar as redes laterais da baliza dos dragões.

O domínio caseiro era quase avassalador ao intervalo: 6-2 em remates e 74%-26% na posse de bola. Faltava veneno na frente, é certo. Já não há a genica de antigamente, as dinâmicas e as sociedades entre os avançados. Pepê talvez sofra com tantas mudanças de posição (na segunda parte voltou a jogar a lateral direito). Otávio, que oscila pouco e é sempre dos melhores, não está a deslizar nas nuvens como outrora. Mateus Uribe, obedecendo à tradicional discrição imperiosa da posição, foi ganhando o seus duelos e dando secretamente um pouco de oxigénio a todos. Era tudo insuficiente.

A segunda parte até trouxe um Portimonense mais afoito. O golo anulado a Galeno, por falta de Toni Martínez no início da jogada, ajudou a manter esse fogo na garganta e nas pernas dos homens que vestiram de amarelo esta noite. Mas tudo ficou mais difícil com a expulsão, por segundo amarelo, de Lucas Ventura. A culpa foi de Martínez, sempre presente, sempre solidário e ‘chato’, que roubou a bola ao médio e escondeu-a até sofrer a falta. O treinador Paulo Sérgio gesticulou como quem lamenta perder aquela boa onda que se ia inaugurando. Mesmo com 10, foi muito meritória a atitude dos futebolistas algarvios, deixando os campeões nacionais desconfortáveis até ao fim.

Sérgio Conceição foi retirando do relvado os jogadores em risco de suspensão. E lançou então, para os últimos 15 minutos, André Franco, Danny Namaso e Gabriel Veron, talvez para trazer mais energia e qualidade com bola. Mas o jogo não teria mais histórias. O FC Porto cumpriu, conquistou mais três pontos e mantém-se a 10 antes do clássico da Luz, que se joga na próxima sexta-feira e que pode relançar ou sentenciar a Liga.

Ou seja, contas feitas, o golo de Fábio Cardoso volta a valer pontos preciosos. Um dos mentores, esteja onde estiver, deverá estar feliz. “O Bruno Alves foi uma das primeiras pessoas com quem falei assim que surgiu a possibilidade de vir para o FC Porto”, contou ainda na tal apresentação como novo futebolista do Dragão, lembrando o ano que ambos passaram juntos no Rangers, em 2017/18, quando jogava com a camisola 4. “Ficou muito feliz por mim, sempre me disse que sou um central à Porto. Aprendi muito com ele, dentro e fora do campo. Perguntei-lhe se se importava que ficasse com o número 2 e ele disse que não, que ficava muito feliz por ser eu a usar o 2…”.

E assim, existindo com memória, se contam histórias sobre identidade e legado.