Primeiro que tudo, o belo de um passou-bem, à portuguesa. Chega de fatiota e gravata, aperaltado para a sua inauguração, tão janota na vestimenta quanto cordial no trato concedido ao jornalista da “RTP” que o espera na margem do relvado, em Alvalade. Na senda de querer ser gostável, ou provavelmente de apenas ser ele próprio, Roberto Martínez aparece todo feito num afável sorriso. Bem vincadas as rugas de expressão a desaguar dos olhos, compenetrado nos olhos do interlocutor, é o novo selecionador quem ri, corrige, diz “quase” e desvenda a equipa inicial a quem o questiona e tenta adivinhar os primeiros onze jogadores que o espanhol escolheu.
Um espanhol que se esforça num portunhol, tem aulas de português, quis aprender logo o hino, ainda vive na Cidade do Futebol e quer explicar-se tintim por tintim é, também, um felizardo por lhe tocar o manso Liechtenstein, principado europeu mas habitante de outros mundos da bola, a jogar o jogo que ninguém se espanta de ver ser jogado. Baixíssimo no bloco que aregimenta para a sua área, com todos os futebolistas que pescou a terceiras, quartas e até quintas divisões da Suíça ou Áustria a defenderem atrás da linha da bola, o adversário é quase anti-competitivo. Um mero corpo presente com os dedos dos pés de Frommelt, Gassner ou Folfinger a titubearem perante um abismo de diferenças.
Nunca, no atual contexto, os melhores de um minúsculo principado fariam mais do que resistir como podiam aos melhores portugueses, donos não inportunados da previsibilidade do jogo. Já depois de João Cancelo, à beira da área e na ressaca de um canto, cedo (8’) marcar com um remate que ricocheteou em várias pernas, a seleção recriou-se a arremessar bolas à baliza, muitas, parecendo um exercício de treino feito só a metade do campo.
Pouco demorou até a questão se resumir a quanto tempo demoraria a bola a ser pontapeada ao alvo novamente: na sua solta deambulação, João Félix teve um par de tentativas que não fugiram ao guarda-redes; abeirado da área, Palhinha bateu o seu; depois de enganar um adversário a deslizar em desespero na relva, Bruno Fernandes também martelou a bola nessas imediações. E entremeado nestes episódios, a pedir fervorosamente serviços na área, um capitão cabeceou um cruzamento, estourou a bola que lhe sobrou da falha de um central, isolado e só perante o guarda-redes, por cima da baliza, e ainda saltou alto para encostar a testa ao que lhe chegou de um canto.
Ronaldo muito rematou, nada acertou. Nele se pode arrancar a esmiúça do que foi a seleção para lá da enumeração dos remates (foram 11), facto estatístico que prova superioridade sem mostrar evidências, como a intuída nos 18 cruzamentos tentados em 45 minutos. E ter Cristiano a titular na frente, no começo da uma nova era quando o selecionador da anterior, sobre quem ele nada disse ou escreveu desde que foi embora após o sentar como suplente nos derradeiros jogos do Mundial, poderá ser um escancarar de intenções.
Do capitão se viu a habitual, apesar de mais contida, atração para as relvas da bola, fugindo da área e deixando-a por vezes órfã de uma referência de atenção para os adversários, ele até a pressionar as raras posses tidas pelos centrais do Liechtenstein, sendo voluntarioso no que de tanto se abstivera em outras primaveras. E Cristiano marcaria, na aurora da segunda parte e de penálti (51’), festejando que nem criança, após Bernardo Silva ajeitar o seu com maior pressa (47’) após um cruzamento de Cancelo ser cortado. Nenhum dos golos vindo do marasmo passador da primeira parte.

Quality Sport Images
Contra um tão encolhido Liechtenstein, o esboço inaugural da seleção no pincel de Roberto Martínez teve-a com três centrais, portanto um trio por trás da bola ao qual se juntou, quase sempre, João Palhinha para providenciar tabelas inócuas com Danilo, Rúben Dias ou Gonçalo Inácio, sempre virados de frente para o jogo. Sobrava meia dúzia de engenhosos portugueses e de saudar a aproximação dos talentosos no campo, porque se os 15 minutos inicias prometeram pela agitação, muito se deveu a João Félix, inquieto a receber na meia-esquerda e a combinar - até trocando de posição - com Raphaël Guerreiro. A eles juntou-se Bruno Fernandes, o ‘8’ que lá muito espreitava para triangular, mas não o fazendo por aí além do outro lado, onde Bernardo Silva se articulou com o frenesim no corpo de Cancelo.
Mas, com tanta bola e findo esse quarto de hora, Portugal tartarugou-se na lentidão dos passes que trocava, olhando mais para o lado do que para a frente, nos buracos entre a multidão do Liechtenstein que a seleção atacou mais pelos flancos do que no nervo. Aos centrais, a quem se sauda a novidade de assumirem a condução de bola e as corridas com ela contra o bloco baixo para fixarem adversários e criarem dúvida (vista em Rúben Dias, sobretudo), juntava-se o inofensivo Palhinha e até Bruno Fernandes com o seu íman para ter objeto redondo. E mesmo com a ocasional diagonal de Cancelo para dentro, era o QI de Bernardo a ficar longe dos lugares onde se matutam as posses de bola, quase crime futebolístico punível por lei.
Ao intervalo se chegou nessa morosidade de passe, estaticismo posicional e gente em demasia fora do bloco do Liechtenstein, a tocar na bola lá atrás só por tocar. O raiar da segunda parte denotou conversas tidas no balneário e o cerna dos matutinos golos logo o provaram - houve os dois médios entre linhas, longe das barbas dos centrais, e Cancelo a romper arrancadas pelo centro, a envolver-se por dentro de Bernardo para baralhar a dócil organização do adversário. Variar, fazer diferente, foi essa a intenção vista.
Na segunda vaga do jogo houve outra variabilidade no jogo da seleção, além do atazanante ala do Bayern também Raphaël Guerreiro, na esquerda, se deu como opção de passe mais pela meia-esquerda, até já quase na área, em posicionamentos que inclusive pisa no Borussia Dortmund. Queria-se gente a espreitar dentro do bloco, já entre linhas, onde os adversários têm que olhar por cima do ombro, puxar pela cabeça e duvidar se vão ou ficam. Bruno Fernandes já ia à esquerda e, sobretudo, à direita, para armar passes com Bernardo e Cancelo e um deles ser o terceiro homem a esquivar-se no espaço enquanto os outros dois combinavam.

FPF
Assim surgiram os golos de Bernardo e Ronaldo. Outro “siii” gritado em uníssono no estádio e encadeado na típica celebração de Ronaldo se ouviria quando Cristiano injetou força bruta num livre à boca da área que voltou a destapar as frágeis mãos de Benjamin Büchel, o guarda-redes que se ajoelhou perante a bola disparada na sua direção. Muitos mais remates houve (23 na segunda parte, sete na baliza) entre os pés de Bruno Fernandes, do frenético Rafael Leão que entrou para ter de se haver, à esquerda, sem as pradarias de que gosta para correr, vários do Palhinha a quem a Premier League está a puxar por esta veia, ou de Gonçalo Ramos, o avançado que teve somente uns 15 minutos de ação. E dúvidas se descortinaram, também, disfarçadas em experiências.
Natural era que assim o fosse e ainda o seja durante algum tempo. Acertadas as movimentações e vendo os jogadores a tentarem tudo fazer com a “intensidade” que seria repetida, no pós-jogo, por João Cancelo, ao explicar o futebol que cai no goto de Roberto Martínez, o engordar do tempo trouxe trocar que poderão ser quebra-cabeças: Palhinha acabou a ser experimentado como central à direita, dando uma pista para onde poderá ser utilizado quando necessário (outro médio lá adaptado, depois de Danilo); Rúben Neves entrou para estar de costas para a baliza, metido entre linhas e a lá pedir bola, evidenciando que o selecionador andará a apalpar terreno por gente que chame jogo ofensivo para o nervo do campo; e João Mário teve pouco tempo para ser um desses deambuladores, provocando uma tristeza abjeta no estádio.
Porque muitos assobios vieram das bancadas de Alvalade, casa do Sporting, antigo clube que não quis acionar o direito de preferência do jogador que assim foi contratado pelo Benfica, onde tem jogado para ser um dos melhores jogadores portugueses convocáveis para a seleção que, pelos vistos, há quem esqueça ser a de Portugal só para dar uso ao sibilo de adepto clubístico. Essa irracionalidade demorará mais tempo a ser curada do que os problemas da equipa nacional, igualmente naturais com tão-só três dias de trabalho.
O Luxemburgo há muito que não é dócil como este Liechtenstein, no domingo (19h45, RTP1) será outro desafio, a necessidade de três centrais contra blocos baixos, a necessidade de acelerar as trocas de bola e o aproveitamento de outros posicionamentos de jogadores entre linhas (Bruno mais subido, Bernardo mais perto da bola, os alas menos estáticos junto às linhas) para o jogo não redundar para as alas e os cruzamentos. O início da obra de Roberto Martínez é prometedora nas intenções mostradas, terá que ser concretizada em padrões que libertem, de vez, o potencial de vários talentosos jogadores de quaisquer amarras da prudência.