Perfil

Crónica de Jogo

O golo da vida de Pote e os voos mágicos de Adán derrubam o Arsenal e colocam um Sporting histórico nos ‘quartos’ da Liga Europa

Depois do 1-1 nos 120 minutos, a equipa de Rúben Amorim eliminou, nos penáltis e em Londres, o líder da Premier League. Numa exibição cheia de personalidade dos leões, Pote vestiu-se de Beckham para marcar um golaço e Adán fez várias defesas de grande nível, culminando no castigo máximo parado a Martinelli que abriu a passagem para a primeira equipa portuguesa a sair sorridente do Emirates

Pedro Barata

Shaun Botterill/Getty

Partilhar

Antuérpia 1964, com o cantinho do Morais. Alkmaar 2005, com o milagre de Miguel Garcia. Manchester 2012, com a defesa de Rui Patrício a cabeçada de Joe Hart. E Londres 2023, com o golo mágico de Pote e as defesas de Adán.

Ao Emirates, de onde nunca uma equipa portuguesa tinha saído sorridente — o único triunfo nacional em casa do Arsenal foi autoria do Benfica, em 1991/92, ainda em Highbury —, o Sporting foi buscar uma passagem histórica para os quartos-de-final da Liga Europa. Na casa do líder da Premier League, uma das melhores exibições europeias do século XXI dos leões valeu uma noite que entra para a galeria dos grandes feitos do clube de Alvalade.

Depois de 120 minutos de personalidade e inteligência, audácia misturada com cautela e talento conjugado com cabeça, os penáltis decidiram o duelo. Ali estávamos porque Pote se vestira de David Beckham, com um golo inspirado no do inglês contra o Wimbledon, uma genialidade só possível vinda de um jogador para quem o contexto soa a indiferente, que parece reagir a quase tudo com aquele encolher de ombros e olhar desafiante, fazendo do Emirates um espaço tão natural para tal audácia como as ruas de Vidago, onde cresceu.

E ali estávamos porque Adán fizera uma exibição para a eternidade, com sete defesas, várias delas de elevada dificuldade. St. Juste, Esgaio, Inácio e Arthur marcaram os seus penáltis, uma lista de marcadores que poderia soar a anedota quando do outro lado bateram Odegaard, Saka e Trossard. Mas Adán ainda não acabara a sua noite.

Martinelli rematou, o espanhol defendeu. Foi o último voo de uma noite em que as luvas do guarda-redes se transformaram em património imaterial do clube de Alvalade. No match point, Nuno Santos não tremeu, indiferente ao concorrente pelo prémio Puskas que tinha acabado de testemunhar (ah, a final da Liga Europa é na Puskas Arena, em Budapeste). O Emirates, a casa do líder da Premier League, a Superliga de facto do futebol europeu, pintou-se de verde e branco.

Adán defende o penálti de Martinelli

Adán defende o penálti de Martinelli

James Williamson - AMA/Getty

Rúben Amorim pedira aos seus jogadores para começarem com bola em Londres, procurando acalmar o ímpeto do Emirates. E a equipa correspondeu, entrando com personalidade e serenidade, circulando sem receio por trás e espreitando a chegada à frente. Aos 9’, Tomiyasu teve de ser substituído por lesão e Arteta aproveitou para fazer uso de uma das suas imagens de marca, um timeout improvisado, chamando todos os futebolistas para receberem indicações na linha lateral, qual desconto de tempo noutras modalidades.

Aos 13’, num momento em que o Sporting tinha 58% de posse de bola, uma das ações pacientemente construídas pelos visitantes levou a jogada até à direita, onde apareceu Francisco Trincão. O canhoto cortou para dentro e rematou com perigo, na primeira ameaça dos leões.

O Emirates pode ter sido, durante muitos anos, um símbolo da perda de poder do Arsenal, a razão pela qual Arsène Wenger viu o seu orçamento reduzido e o estatuto do clube redefinido, de crónico candidato a vencedor da Premier League a jardim de infância de topo do futebol internacional, um espaço onde se jogava bem até se aplaudirem os triunfos alheios. O dinheiro gasto na construção do recinto que substitui o romantismo de Highbury condicionou os vermelhos e brancos do norte de Londres, mas hoje em dia respira-se no Emirates um ar diferente, de sonho, de esperança, de reconstrução.

Daí que seja preciso tão pouco para acender a chama do público. Aos 16’, um primeiro lance de perigo de Gabriel Jesus mudou o ambiente. De frio e quase indiferente, o Emirates passou a quente e entusiasmado, empurrando a equipa para a frente. O Arsenal escutou as bancadas e chegou ao 1-0 aos 19’: bola nas costas da defesa do Sporting, com Esgaio a falhar o corte perante Martinelli. O brasileiro viu o golo negado por Adán, mas Xhaka não falhou na recarga.

Xhaka remata para o 1-0

Xhaka remata para o 1-0

Marc Atkins/Getty

O 1-0 foi a correspondência futebolística ao acordar emocional das bancadas, seguindo-se a ele momentos de aperto para o Sporting. Martinelli e Gabriel Jesus sambaram perante a defesa leonina, mas Adán disse presente e evitou o aumentar da desvantagem. Durante quase 20 minutos viu-se uma versão encolhida dos verde e brancos, mas talvez estivesse ali o primeiro indício do êxito, na capacidade de, numa noite em que se mostrou bom futebol, também saber sofrer, tremer mas não cair. E em que houve alguém na baliza a salvar os demais, claro.

No final do primeiro tempo, a equipa portuguesa melhorou, voltando a um registo aproximado do mostrado no arranque. Diomande revelava serenidade na defesa, uma calma estranha para quem a 21 de janeiro estava a disputar um Mafra-Trofense. Ugarte tentava multiplicar-se no meio-campo. Uma grande arrancada de St. Juste, daquelas em que o defesa parece um candidato aos 100 metros nos Jogos Olímpicos, devolveu sinais de perigo junto de Ramsdale. Em cima do descanso, um tiro de fora da área de Ugarte passou bem perto do poste direito do guardião inglês, na situação mais perigosa do Sporting na etapa inicial.

Os homens de Rúben Amorim deram continuidade ao atrevimento no segundo tempo. O silêncio do Emirates voltara, só interrompido pelos adeptos do Sporting. Aos 62', o silêncio tornou-se mais expectante que nunca, com aquele suster de respiração que há antes de um instante de grande impacto que tudo muda.

Os leões recuperam a bola no meio-campo. Pote ficou com ela no círculo central, a mais de 40 metros de Ramsdale. Rematar dali é uma ousadia de pensamento e uma impossibilidade de execução. Talvez por isso, o atrevido e irrequieto Pote rematou.

A bola planou no ar, talvez os deuses do futebol estivessem em concílio para decidir como julgar tamanho atrevimento. A decisão foi a aterragem da bola no fundo das redes do Arsenal, perfeitamente encaixada entre o voo do guarda-redes e a barra, um míssil que teve tanto de poderoso como de elegante, uma mensagem de personalidade no momento mais importante. Eliminatória empatada.

1 / 4

Eddie Keogh - UEFA/Getty

2 / 4

Mike Hewitt/Getty

3 / 4

Shaun Botterill/Getty

4 / 4

Charlotte Wilson/Offside

O golo da vida de Pote acentuou a superioridade do Sporting. Com o público visitante em euforia, os centrais recuperavam alto, Ugarte dominava o meio-campo e o ataque ameaçava. Logo depois do 1-1, após canto do autor da obra de arte, Paulinho, de cabeça, esteve perto de dar a vantagem ao Sporting. Aos 23 minutos do segundo tempo havia, só na etapa complementar, 64% de posse para os leões e cinco tiros para os visitantes, contra zero dos locais.

Aos 72’ veio a melhor oportunidade para o 2-1 para a equipa portuguesa. Esgaio avançou rapidamente pela direita, encontrando Edwards sozinho no meio. O londrino, isolado na casa do grande rival do clube que o formou, o Tottenham, rematou, mas Ramsdale evitou o golo com a cara. A eliminatória decidir-se-ia no prolongamento.

Os 30 minutos adicionais começaram com a versão vermelha e branca do lance desperdiçado por Edwards. Essugo, lançado juntamente com Nuno Santos dois dias depois de ter cumprido 18 anos, fez um passe para trás sem olhar, isolando Trossard. O belga, sozinho perante Adán, viu o espanhol desviar o seu remate. O desvio feito pelo espanhol levou a um instante que fez recordar o prévio ao golo de Pote, meio segundo em que não se sabia se seria golo ou não. A bola foi ao poste.

A defesa de Adán depois do erro de Essugo

A defesa de Adán depois do erro de Essugo

GLYN KIRK/Getty

Ao minuto 100, Arteta lançou Odegaard, um luxo que agitou o desafio. Com Odegaard ou Saka frescos, o Arsenal encostou o Sporting atrás. Holding e Thomas Partey falharam o alvo até voltar a aparecer Adán.

Talvez a resistência mostrada pelo Sporting tenha sido a união das duas equipas montadas de Rúben Amorim. A capacidade de sofrer e a estrelinha do ano do título com o talento para lutar contra grandes rivais da presente temporada. Aos 117', novo voo mágico de Adán tirou o golo a Gabriel, que depois viu Diomande, o costa-marfinense de 19 anos que encheu o Emirates, negar-lhe o 2-1. A veterania de Adán e a juventude de Diomande, a qualidade para ter bola e a predisposição para aguentar: a noite do Sporting fez-se de casamentos de virtudes distintas.

Ugarte ainda foi expulso antes dos penáltis. Ver o valor de mercado estimado dos marcadores de ambos os lados é um exercício que ajuda a perceber como esta foi uma vitória de superação por parte do Sporting. Antuérpia 1964, Alkmaar 2005, Manchester 2012, Londres 2023. O silêncio antes do golo de Pote e dos voos de Adán, aquele suster de respiração, deu lugar à euforia dos festejos. O Emirates entra para a história dos leões.