Quando Alejandro Grimaldo sobe com a bola controlada pelo lado esquerdo, a precisão dos pés do lateral espanhol parece conectar-se com a clareza das ideias que saem da cabeça do canhoto. Como se esta ligação entre a ponta dos pés e o cérebro se contagiasse ou reproduzisse, o mesmo sucede com Fredrik Aursnes, no milagre da multiplicação do pensamento vestido de futebolista no Benfica.
O pé esquerdo de Grimaldo tricota e coze as jogadas, procurando espaços e tabelas, progressão em apoio e perigo, enquanto à sua frente há um norueguês que parece omnipresente. Aursnes parte da esquerda para terminar na direita, procura bolas no pé e no espaço, dando a ideia de ter feito uma aposta consigo próprio para nunca falhar um passe ou protagonizar uma decisão incorreta.
Ambos combinaram no lance do 3-0, em que Grimaldo assistiu David Neres para um golo que espelha bem o nível atual do Benfica: fluido e dinâmico, ágil e agressivo, insaciável. Aquela jogada deixou a visita ao Funchal sentenciada, com um bis do atacante brasileiro, expressando as muitas virtudes que fazem com que a equipa de Roger Schmidt vá acumulando exibições convincentes.
São já oito vitórias seguidas na I Liga, sempre por uma diferença maior que um golo. O FC Porto continua a oito pontos de distância, o SC Braga a 10 pontos dos líderes que em 24 jornadas têm 21 vitórias, dois empates e uma derrota.
HOMEM DE GOUVEIA/Lusa
O duelo no Funchal era um choque de contrastes. O Benfica, melhor ataque e melhor defesa da I Liga, contra o Marítimo, pior defesa e pior ataque (a par do Paços de Ferreira). Os lisboetas, com nove triunfos nos últimos 10 jogos, e os madeirenses, com seis derrotas nos derradeiros cinco duelos. Durante boa parte do primeiro tempo, essas diferenças de dinâmica notaram-se.
O Benfica demorou seis minutos a criar uma grande oportunidade de golo. Após um lançamento de linha lateral da direita, Mosquera deixou a bola passar, Aursnes aproveitou e serviu João Mário, que rematou por cima.
O lance resumiu muito do que foi a primeira parte: a apatia e passividade defensiva dos locais, muito pouco contundentes nas ações defensivas; a inteligência e omnipresença de Aursnes, o norueguês que pensa tão alto enquanto joga que quase se consegue ouvir; o desperdício na finalização de João Mário, o outrora médio sem golo que se tem fartado de festejar esta época mas que foi perdulário nos Barreiros.
Aos 17’, após cruzamento da direita, João Mário voltou a falhar no remate quando estava perto da baliza de Marcelo Carné. Aos 30’, explorando o adiantamento da defesa do Benfica, Gonçalo Ramos deu para Aursnes, o omnipresente, rematar para defesa do guarda-redes dos locais. Renê Santos evitou a recarga em falta e fez penálti, mas voltou a haver um pouco eficaz João Mário, que, na transformação do castigo máximo, colocou a bola na bancada.
O Marítimo não fez qualquer remate à baliza de Vlachodimos no primeiro tempo, uma equipa com algumas boas intenções na pressão ou circulação mas sem último terço. Do lado dos visitantes, a dinâmica ofensiva passava pelas conduções de Grimaldo, o flutar entre-linhas de David Neres, vestido de Rafa, e a inteligência e futebol pensante de Aursnes. Aos 34’, os três combinaram, mas o brasileiro viu Marcelo Carné fazer uma grande defesa.
O 1-0, em cima do intervalo, voltaria a deixar evidente a falta de contundência na defesa do Marítimo. João Mário, novamente atacando o espaço nas costas da defesa dos insulares, ficou em boa posição para rematar, mas, talvez influenciado pela falta de acerto na finalização que vinha revelando, hesitou. Perdeu momentaneamente a bola, mas a passividade dos locais voltou a ser gritante. João Mário recuperou e serviu David Neres para o golo. Ainda antes do descanso, nova combinação entre os cérebros pensantes e as pernas precisas de Grimaldo e Aursnes quase deu no 2-0.
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O arranque da segunda parte trouxe o acerto na cara do golo que estava a faltar ao Benfica. Aos 50', Grimaldo cruzou da esquerda e Mosquera e Marcelo Carné quiseram mostrar algumas das razões para que o Marítimo seja a pior defesa do campeonato, descoordenados e pouco decididos, distribuidores de ofertas. Agradeceu João Mário, que com a baliza aberta não falhou. São já 21 golos na época para o médio outrora sem baliza.
Sete minutos depois, chegou o 3-0, talvez no melhor lance do duelo, uma demonstração da qualidade na execução e decisão de Aurnses e Grimaldo, um guia prático de como finalizar uma transição. O espanhol chegou às 12 assistências em 2022/23, servindo David Neres, que aproveitou a ausência de Rafa da melhor forma.
Os últimos 30 minutos do desafio foram quase uma mera burocracia, um passar do tempo sem muita história. Vlachodimos manteve a boa série, só tendo sido batido uma vez nas últimas oito jornadas.
Aos 82', Aursnes ainda voltou a deixar mais uma lição de como temporizar à espera do melhor momento para passar, mas João Neves, o adolescente da camisola para dentro dos calções, não conseguiu marcar. O pior que o jogo deixou para o Benfica foi o amarelo visto por Aursnes, que o afasta da próxima partida, contra o Vitória SC.
Já em período de descontos, Schjelderup e Tengstedt, os nórdicos contratados no mercado de inverno, estrearam-se. Baseando-se nas mentes de Grimaldo e Aursnes e no veneno de David Neres, já com 12 golos na época, o Benfica fez da Madeira novo palco de demonstração do momento exuberante do coletivo.