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Camarões - Brasil. As zebras e o 'joão' de Antony

Crónica de Jogo

Clive Brunskill

As surpresas continuam pelo Catar e desta vez foi o Brasil a cair perante os Camarões, com um golo tardio de Aboubakar. Apesar da vitória, os africanos foram superados no Grupo G pela Suíça, que bateu a Sérvia e vai defrontar agora Portugal nos ‘oitavos’. Os brasileiros defrontam a Coreia do Sul de Paulo Bento

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Hugo Tavares da Silva

Hugo Tavares da Silva

enviado ao Mundial 2022

Jornalista

Em tempos idos houve um mito, embora já desmentido (talvez por Ruy Castro), de que Garrincha chamava joão aos defesas que tinha pela frente, pobres testemunhas do inevitável, como que cavando um abismo entre o anjo e o anónimo. Consta que Mané nem gostava dessa brincadeira, pois os visados atacavam-lhe as pernas ainda com mais força. Esta noite, no Lusail, o joão de Antony foi Tolo.

Nos primeiros minutos, talvez cinco ou 10, o extremo do Manchester United inventou três dribles – um deles bárbaro, pisando a bola para um lado enquanto o corpo adormecia malandramente para o outro – e tocou para um colega com o calcanhar, assim meio no ar. Por onde andava, Antony, com um joão por perto ou nem por isso, era o Brasil inteiro naquele metro quadrado. O canhoto teve algumas bolas para meter na baliza, mas Devis Epassy era tudo menos tolo, então a baliza ficou imaculada.

Mas a de Ederson nem por isso, graças a um golo mui tardio de um tal de Vincent Aboubakar, de cabeça. O cruzamento foi de Jerome Mbekeli, da direita, e o ex-avançado do FC Porto acabou expulso, graças a um segundo amarelo por tirar aquela camisola bela como as coisas mais belas e exibir um torso espantoso.

Mais que nada
Sai da minha frente que eu quero passar
Pois o samba está animado
O que eu quero é sambar

Ouvia-se na chegada à tribuna de imprensa, o que permitia a qualquer fiel transferir-se para aquele anúncio da Nike em que os futebolistas brasileiros, em 1998, vão fazendo as suas travessuras no aeroporto. Dois protagonistas, Roberto Carlos e Ronaldo Nazário de Lima, estavam esta noite neste estádio, em Doha.

Soccrates Images

Nouhou Tolo já tinha um amarelo aos 6’, cortesia de Antony. O Brasil apostava numa equipa quase toda novinha, deixando perto de Tite um crédito muito bem parado no banco. Na frente jogaram Rodrygo, Antony, Gabriel Martinelli e Gabriel Jesus, o quarteto mais jovem num Mundial desde que Garrincha, Mazzola, Zagallo e Pelé, escudados pelo mago Didi, brilharam nos campos do Suécia-1958.

Este jogo seria jogado a um ritmo pacato, como o céu limpo de nuvens, embora fosse sacudido pelas ventanias que resultavam das correrias de Martinelli, mas também pelas ideias de Rodrygo e o drible maquiavélico de Antony. Os brasileiros iam encontrando espaço pelas linhas, mas também se tocava por dentro ou, quando começando de trás, até Ederson descobria Rodrygo, a fazer de Neymar Jr., lesionado. Uma importante parte dos 86.986 adeptos no Lusail delirava quando o jogador do PSG aparecia no ecrã gigante.

Mas os Camarões não vieram atestar a magia dos feiticeiros. Com gente na frente poderosa e boa de bola, como Aboubakar e Eric Choupo-Moting, iam encontrando tempo e espaço nas zonas e botas de Nicolas Ngamaleu e Bryan Mbeumo. Atrás deles estava o especial futebolista do Napoli, Frank Anguissa. Foi sempre um incómodo, esta seleção africana orientada por Rigobert Song, e Ederson teve mais do que uma vez de sujar os calções e testar a aderência das luvas, até que ficou pasmado, qual estátua, com aquela bola que saiu da cabeça de Aboubakar, já depois da hora.

Aos 32’, os adversários do Brasil já contavam com três cartões amarelos. Não foram poucas as vezes que travaram aquelas divinas brasileirices recorrendo à falta, às vezes a única forma de lidar com gente que nasceu para fazer algo.

Matthias Hangst

O Brasil batia à porta, mas nada. Rodrygo, a cria do Santos, e Daniel Alves, que ia tocar dentro libertando a linha para Antony, tentaram de livre direto. Mas a bola, pouco seduzida por aqueles breves poemas, olhou por cima do ombro e seguiu por um caminho diferente do da baliza.

Não era um jogo eletrizante, nem muitíssimo bem jogado, mas permitia muitas oportunidades de golo, havia vulnerabilidades várias. E era sobretudo viciante pela vertigem e possibilidade de um drible ou de um golo, mas também pela coragem dos africanos, que lutaram até ao fim pelo apuramento. As zebras – surpresas em português do Brasil – têm pingado neste Campeonato do Mundo como o calor escorre do céu.

Tite começou a mexer. Primeiro Bruno Guimarães, Éverton Ribeiro e Marquinhos. Depois, Pedro e Raphinha. Nenhuma destas feras colocaria a bola na baliza de Epassy. Martinelli bem tentava. Olivier Ntcham, que substituiu Pierre Kunde, dava troco. E logo depois de se abrir um buraco no meio. Ederson puxou as orelhas aos colegas.

O Brasil quase, quase empatou por Bruno Guimarães e outros infelizes. Não era o dia de a refinaria da técnica espremer um sumo gostoso. Fica o aviso, como ficou para Portugal umas horas antes. Ou Espanha. Ou Alemanha. Ou Argentina. Ou França. Enfim, o mundo está mais pequeno e não há papões. Já a população de zebras no Catar está aumentando muito…