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Bastou um momento do super-herói

Crónica de Jogo

Claudio Villa

Os sul-coreanos tinham fome, queriam algo deste jogo e ia ser sempre perigoso. Eles correriam até amanhã de manhã e correram, ganhando (2-1) a Portugal com um golo já nos descontos, em transição rápida após um canto. Mesmo assim, a seleção nacional passa aos ‘oitavos’ em primeiro lugar, mas fica o aviso feito

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Hugo Tavares da Silva

Hugo Tavares da Silva

enviado ao Mundial 2022

Jornalista

Até entrou com uma máscara e, na dúvida, podia assumir-se que algo de super-herói teria. Depois de um canto para Portugal, já para lá da hora quando o jogo estava empatado e prometia assim terminar, Son teve mais uma bola.

Não tinha capa, mas correu como se todos os fabulosos da Marvel estivessem a patrocinar aquela cavalgada. A velocidade era alucinante e o som que saía das gargantas das gentes que o adoram subia e subia, metro a metro, decibel a decibel. Aguentou o choque de Palhinha, o que não é pouco, não perdeu o equilíbrio, e tocou para Hwang Hee-Chan. O toque foi primoroso e a Coreia do Sul celebrava apaixonadamente no Estádio Education City, em Doha, a vitória e o que parecia ser a passagem aos oitavos de final. Desta vez não houve Park Ji-sung como em 2002, mas bastou um super-herói fabuloso.

Não se jogava contra uma equipa qualquer. Não só atuam com um orgulho tremendo, como não olhavam para este jogo como uma missão impossível. A seleção sul-coreana, treinada por Paulo Bento (castigado), um dos protagonistas deste mesmo duelo há 20 anos, demonstrou ser sempre como aquela maldita bolha no pé, um total desconforto. Têm muita energia para morder as botas dos adversários, jogam com linhas muito curtas para impedir o talento rival de entrar pelo meio e, com bola, sabem tratar bem dela ou sair rapidamente como bestas famintas. O maior craque é Heung-min Son, que foi quase sempre um refém de Diogo Dalot esta noite. Kang-in Lee e Jae-Sung Lee, que pisavam terrenos intermédios e pela meia-direita, iam exibindo um nível bárbaro.

Fernando Santos, com o apuramento no bolso, trocou seis jogadores em relação ao jogo com o Uruguai: Dalot, António Silva, Vitinha, Matheus Nunes, João Mário e Ricardo Horta entraram no 11. O central do Benfica, que logo aos 20 segundos fez uma falta clássica de início de jogo ao poderoso número 9 do outro lado, transformou-se no futebolista mais jovem a jogar pela seleção nacional num Campeonato do Mundo, repetindo a feitura de Paulo Futre em 1986. Ao lado tinha Pepe, o defesa que também superou Vítor Damas como futebolista mais velho a jogar por Portugal neste torneio.

Com a bola não se sofre golos, já diziam Johan Cruijff e outros sábios, então Portugal agora vive assim, pacientemente à espera de um espaço para parir algo especial. Aconteceu logo aos 5’. Pepe, com a bota cheia de giz, meteu longo para Dalot. O lateral do Manchester United, que surge numa bela forma, recebeu, correu, superou o rival e tocou para dentro, onde surgia Ricardo Horta. Obediente e conhecedor dos timings das chegadas, uma das mais belas-artes do futebol, o avançado do Sp. Braga meteu lá para dentro com categoria. Encorajando, Son mostrava o gesto das palmas para os colegas, pois o som era impossível chegar-lhes. A certa altura, mudou de lado para desenjoar do rosto do carrasco.

A entrada de Dalot significou que João Cancelo passava para a esquerda, onde parece estar mais confortável. Porém, tecnicamente, foi baixando o nível. Matheus Nunes só foi uma vez aquele futebolista de transporte que enche o campo, passando por dois adversários como se fossem árvores e soltando depois para o lateral direito, que tinha o caminho livre. De resto, e sabendo que se trata de uma equipa nova e por isso sem grandes dinâmicas e rotinas, o médio do Wolves ajudou sobretudo a manter e a recuperar a bola.

A paciência ia reinando, mas o pressing sul-coreano também. Tinham fome. Queriam algo deste jogo. Ia ser sempre perigoso. Correriam até amanhã de manhã. O golo que deixou tudo igual chegou mesmo, aos 27’, de canto. Depois de um duelo no primeiro poste, com o bravo Gue-sung Chon, a bola foi caprichosa e tocou no encolhido Cristiano Ronaldo. Sobrou para Young-Gwon Kim e o central encostou com facilidade.

James Williamson - AMA

Son já ia aparecendo mais vezes. Assume tudo, é o líder. É um fantástico futebolista. Certa vez enganou Pepe, com dois toques e uma pausa eterna, e bateu na baliza. Vitinha e Cristiano Ronaldo não ficaram assim tão longe do empate, pouco depois, neste jogo com o ritmo acelerado no que toca a correrias e contra-ataques. Estes dois jogadores partilharam aliás um dos momentos mais belos desta partida, quando trocaram a bola entre eles em progressão pelo meio.

Sempre mudo nos gestos e estridências, Vitinha entrou no relvado e simplesmente começou a jogar como se deveria jogar um Campeonato do Mundo. Sem hesitações ou questionamentos de alma, jogou como se estivesse a jogar um Mundial ao lado dos melhores jogadores do mundo, algo a que está tão habituado dia sim, dia sim, em Paris. É um futebolista especial e terá de estar na cabeça de Fernando Santos para o futuro próximo.

Quando faltavam 25 minutos para o apito final, o selecionador nacional sacou Matheus Nunes, Rúben Neves e Cristiano Ronaldo (faz o suficiente para ser titular indiscutível?), que teve outra noite discreta, deixando os seus enlouquecidos fãs a morrerem de sede da sua glória. João Palhinha, Rafael Leão e André Silva entraram, empurrando João Mário para o miolo.

Diogo Costa foi convocado para parar alguns tiros saídos dos pés desta competitiva e cheia de qualidade gente de vermelho. Hwang Hee-Chan, do Wolves, entrou para dentro de campo como quem quer ser importante e, cada vez que desatava numa desenfreada correria, ofereceu à espinha de cada português um glorioso calafrio.

O ritmo baixou muitíssimo após as substituições. Portugal, incapaz de segurar a bola longe da baliza e encontrar-se com alguma fluidez, ia aceitando o espaço que lhe davam e saía de vez em quando em contra-ataque ou ataque rápido, esticando a equipa e colocando-se em xeque. Rafael Leão voltou a não entrar bem e Dalot continuava a voar como se fosse uma celebridade. Bernardo Silva e William Carvalho entraram perto do apito final, o tal que não aconteceu antes do golo de Hwang Hee-Chan.

Depois do final do jogo, ansiosos e angustiados à espera do resultado do Uruguai-Gana, os jogadores da Coreia do Sul esperaram abraçados, numa roda cheia de esperança. Os gritos e os saltos da água e dos homens denunciavam a alegria de um povo inteiro.

Teremos Son por mais uns dias.