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Crónica de Jogo

“In contest”, a praia da Austrália

Foi no âmago da nova estatística que a FIFA anda a estrear neste Mundial que os socceroos descobriram a primeira vitória no torneio. Jogando direto, apostando em duelos no ar e confiando nas segundas bolas, superaram largamente a fome por pressionar da Tunísia (1-0) na primeira parte. Depois, aguentaram a área com uma muralha que bloqueou quase tudo

Diogo Pombo

Matthias Hangst/Getty

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Tanto inventou ao mobilizar o Mundial para o desértico Catar, deitando-o numa cama de subornos pagos, direitos humanos menosprezados e termómetros veraneantes esquecidos, a FIFA pegou em algum do dinheiro que recheou a ida ao Médio Oriente para, ao menos, bem inventar na tecnologia para este torneio não ter apenas magicações reprováveis, mesmo que esta, em particular, possa servir para denegrir o jogo ao qual se refere. E à monotonia das percentagens da posse de bola que aparecerem de quando em vez no ecrã juntaram uma outra, para aferir quando a bola é de ninguém.

Estava o Tunísia-Austrália prestes a debruçar-se sobre a metade da sua primeira parte e brotaram uns números na transmissão televisiva que não apenas os tradicionais, que convidem a conclusões precipitadas, sobre quem desfrutava de maior companhia da bola. Havia já vinte e tal minutos jogados e ela contava quase 20% do seu tempo sem dono, caindo na categoria do “in contest” introduzido pela FIFA neste Mundial, ou seja, em vez de confortavelmente a viajar de pé para pé, os magrebinos de África e os ilhéus da Oceânia andavam a dividi-la muito pelo ar.

Deixando os eufemismos, teimavam em ignorar o facto de a bola ser redonda precisamente para não haver pudores em fazê-la rolar pela relva, mas, tendo visto as facas nos dentes com que Aïssa Laïdouni, Issam Jebali ou Ellyes Skhiri se precipitaram sobre qualquer disputa no jogo anterior, os australianos quiseram fugir à implacável dureza que os tunisinos queriam repetir em cada duelo que tivessem de dividir em campo. Desde cedo, os conterrâneos dos cangurus chamavam a pressão adversária junto do guarda-redes e dos centrais para, assim que fixada a atenção, rasgaram passes longos para Mitchell Duke, o avançado que segurava bolas para as deixar nos médios que se aproximavam dele virados para a baliza e só preocupados com isto.

Assim os australianos foram evitando os lances na relva que os jogadores da Tunísia viviam como se fosse o último, festejando cortes inócuos a meio-campo com gritos de guerra e olhos esbugalhados, obrigando-os antes serem iô-iôs de corridas para a frente e para trás. Chegavam atrasados às segundas bolas, acorriam tarde à proteção da sua área e eram apanhados a meio de recuperação de posições como aos 23’, quando Goodwin tirou um de muitos cruzamentos bem à distância da baliza para Duke ir buscar, de costas e com o cocuruto da cabeça, o 1-0 às alturas para onde a Austrália colocava o jogo.

David Ramos - FIFA

Só tarde e colados ao intervalo é que os tunisinos assentaram no tal “in contest” de bolas áreas, chutões constantes e jogo direto, com Mohamed Drager e Youssef Msakni a terem remates na área australiana quando lograram colocar a bola na relva, estado respeitador da gravidade que até se viu mais na segunda parte, para desprimor da nouvelle estatística da FIFA, mas sem propriamente aprimorar o jogo por aí além.

Baixando as suas linhas e compactando a equipa na sua metade do campo, a Austrália concedeu a iniciativa à Tunísia sem lhe dar aquilo pelo qual saliva para provocar o caos na área dos adversários - os socceroos ainda batiam a bola longa a partir dos seus centrais, fugindo à fome da pressão alta tunisina. O que os africanos tinham era protagonismo em organização ofensiva, em terem de descortinar maneira de mexerem com o bloco alheio com 10 ou 11 jogadores atrás da bola.

Entre as tentativas do irrequieto Youssef Msakni, o 7 cheio de genica para combinar tabelas e ser o mais afim de agitar as coisas e os remates à beira da área motivados pela incapacidade em entrar no quintal adversário, a muralha da Austrália foi sustendo tudo com as torres humanas que são Harry Souttar e Kye Rowles. Tendo cada um pouco espaço para cuidar e defendendo perto da própria baliza, o par de centrais cortou a maioria das frustradas intenções da Tunísia. Depois, nos momentos em que podiam respirar, os australianos confiavam nos pés de Aaron Mooy, o careca que mais respeitam quando queriam ter a bola na relva.

O primeiro remate dos tunisinos na baliza viu-se, apenas, aos 72’, indo docilmente às mãos de Matt Ryan pouco antes de Leckie quase raspar o pé num cruzamento rasteiro na outra área. Mesmo algo sufocados e encostados no seu campo, a melhor oportunidade foi dos que vieram da terra lá de baixo do mundo, de onde vieram sem cerimónias em fazer do jogo um vaivém, um carregar de bolas longas e um depósito de disputas no ar. A Austrália confiou no “in contest”, ganhou, está com quatro pontos e ainda na luta pelos oitavos de final.

Com um ponto e faltando o jogo com os campeões mundiais, a Tunísia já ouve o sussurro do adeus a este Mundial.