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Crónica de Jogo

A bola gostou, EUA

Num jogo muitíssimo bem jogado pelos norte-americanos, o marcador não superou o 0-0 contra a Inglaterra. Os futebolistas britânicos ajoelharam-se antes do apito inicial. Todas as equipas do Grupo B podem passar para os oitavos. Inglaterra-País de Gales e Irão-Estados Unidos contam muitas histórias e prometem uma noite quentinha na próxima terça-feira

enviado ao Mundial 2022 Hugo Tavares da Silva

Matthew Ashton - AMA

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Um dos joelhos dos futebolistas ingleses voltou a sujar-se de relva, tal como acontecera na Premier League. Em vez de taparem a boca como os alemães, os britânicos recuperaram o gesto para não ficarem de joelhos perante a FIFA. Fora do Al Bayt Stadium, onde chocam sem chocar as culturas e as identidades, uma banda de norte-americanos cantava “Keep on rockin' in the free world”. Ah, as ironias. Do lado da beleza do jogo, os 68,463 terão ficado muito agradados com a exibição dos Estados Unidos.

A equipa de Gareth Southgate ia afinando associações pela direita. Entrou melhor. Os norte-americanos estavam ainda a meter o pé na água, medindo a coisa. Os ingleses tiveram tanta bola, mais na defesa, que os de azul pareciam meros anónimos à espera de qualquer coisa. Mas a bola, sem avisar ninguém, começou a apreciar mais a companhia deles. Recompensou a coragem e o esforço de Yunus Musah e Tyler Adams e aceitou corar nas botas de Weston McKennie e Christian Pulisic. Os da frente, Timothy Weah (sim, filho da lenda) e Haji Wright, fechavam o 4-4-2, tentando incomodar John Stones e Harry Maguire (boa exibição), muitíssimo aplaudido antes de a bola rolar.

Enquanto começava a chover o bom futebol que vem das Américas, Harry Kane, no seu jeito discreto deixava escapar detalhes valiosos. A forma como usa o corpo é assombrosa. Usa os rivais para rodar, guarda a bola, parece que tem mais do que duas pernas. A carapaça ajuda, mas o instinto e o conhecimento do jogo leva-os debaixo da pele. Muita bola para os de branco, mas essa ferramenta que nos apaixona a todos não chegava aos que podiam fazer mossa, Raheem Sterling, Mason Mount e Jude Bellington, todos estranhamente discretos e totalmente fora do jogo.

O ambiente era muito melhor do que em muitos estádios. Os norte-americanos e ingleses sabem fazer a festa. Por esta altura, a caminho do intervalo, Sergiño Dest já se juntara à festa. A técnica do lateral do AC Milan é admirável. E os Estados Unidos deram o murro na mesa finalmente aos 43’, quando Pulisic disparou para a trave da baliza de Jordan Pickford. As mãos do jogador do Chelsea viajaram até à cabeça, num gesto que se alastra por todo o mundo, como aparentemente os quatro piscas quando há trânsito repentino.

Quality Sport Images

O ex-futebolista Stan Collymore ia pedindo, no Twitter, o regresso aos três centrais. Afinal, foi assim que se deram tão bem recentemente. Iam ficando cada vez mais previsíveis. Acabariam por ser os EUA a fazer isso na segunda parte, a espaços, com Adams a recuar para o meio dos centrais Walker Zimmerman e Tim Ream. Os ingleses responderam, mas pela vez dos adeptos no intervalo, cantando tão bem o “Sweet Carolina”. Não havia jeito de derreterem o 4-4-2 alheio, bem organizado e corajoso. As saídas de bola, com Matt Turner, o guarda-redes, a subir às vezes com a bola alguns metros e a deixar empolgados compatriotas e rivais.

Os underdogs foram criando mais oportunidades, repetiam-se os cantos. Iam banalizando a vizinhança. Southgate sacou então Bellingham e Sterling, para entrarem Jordan Henderson e Jack Grealish, que mal entrou agitou o jogo. Mas é quase de quebrar o coração ver um futebolista assim, que parecia um cavalo selvagem no Aston Villa, estar preso ao corredor, esperando a bola, convocando a paciência e afunilando para um lugar misterioso a irreverência e a sua essência como futebolista. Estranhamente, Phil Foden manter-se-ia no banco até ao final do jogo.

Os adeptos norte-americanos iam acreditando que era possível dar um golpe. A Inglaterra resistia e já ia levando mais a bola para a frente, mas sem encantar. Já havia Marcus Rashford, ovacionado pelas suas gentes. Harry Kane, que erguia a braçadeira de capitão a dizer não à discriminação, fez o derradeiro remate, que não terá passado muito longe do poste. Seria uma gloriosa injustiça. Os Estados Unidos mostraram que podem ser um caso sério. Jogaram muito, souberam arranjar soluções para sair de trás, e a mobilidade e refinada técnica atentaram contra o favoritismo britânico.

O Grupo B fica assim espectacular: Inglaterra quatro pontos, Irão três, Estados Unidos dois e País de Gales um. Todos podem passar e, para sacudir-se o pó de tantas histórias de tempos idos, haverá um EUA-Irão como prato forte.