Ciclismo

Um último sprint para a eternidade: Cavendish ganha e torna-se no ciclista com mais vitórias na história do Tour

Um último sprint para a eternidade: Cavendish ganha e torna-se no ciclista com mais vitórias na história do Tour
Dario Belingheri/Getty

O britânico, de 39 anos, chegou aos 35 triunfos em etapas da Volta a França, sendo o mais veloz na quinta tirada desta edição da corrida. Segundo mais veterano da história a ganhar no Tour, Cavendish conseguiu o objetivo que o vinha fazendo adiar a retirada. Quando ele ganhou pela primeira vez no Tour, em 2008, 98% do pelotão da presente edição da corrida ainda nem competia profissionalmente

Um último sprint para a eternidade: Cavendish ganha e torna-se no ciclista com mais vitórias na história do Tour

Pedro Barata

Jornalista

Os derradeiros anos da carreira de Mark Cavendish foram feitos em função destes segundos. Tudo foi planeado, sacrificado, pensado, sofrido em nome dos metros finais da chegada a Saint Vulbas. Na verdade, Mark Cavendish só é um ciclista e não um ex-ciclista porque desejava, no fundo do seu ser, viver estes instantes.

A retirada foi sendo adiada. Ela já a anunciara, mas foi fazendo marcha-atrás na intenção. Queria tentar uma última vez. Pedalou no Tour de 2023 para fazer essa tentativa. Caiu à oitava etapa, abandonou. Adiou a retirada. Ia tentar outra vez. A última, desta vez é que era a derradeira.

Mark Cavendish só é uma lenda em atividade e não uma lenda retirada porque sonhava com isto. Um último sprint. Pelotão compacto, nervos, stress. Ele a procurar a melhor roda à entrada para a última reta. Uma última reta. Um último sprint.

E lá foi ele. No estilo de sempre, baixando a cabeça, quase a unindo, por vezes, com o guiador. Não ganhava no Tour desde 2021. Há quanto tempo não batia, num mano a mano, uma concorrência deste nível, com Jasper Philipsen, Arnaud De Lie, Fabio Jakobsen, toda a elite do sprint, todos velocistas muito mais novos que ele, todos tendo crescido tendo o britânico como referência? Não importa.

“O Tour de France é maior do que o ciclismo”, diria minutos depois daquela fuga para a vitória. Do sprint, do último sprint. A carreira dele, a vida dele, a existência dele, foi, nos últimos anos, feita à espera disto. Valeu a pena.

Mark Cavendish, da Astana, ganhou a quinta etapa do Tour 2024, sendo o primeiro a cortar a meta após os 177,4 quilómetros entre Saint-Jean de Maurienne e Vulbas. Chegou às 35 vitórias em tiradas da maior das corridas, desempatando com Eddy Merckx.

Aos 39 anos, é o segundo mais veterano de sempre a ganhar no Tour de France. Mais velho só o belga Cerami Pino, com 41 anos, no distante 1963.

Quatro etapas em 2008. Seis em 2009. Cinco em 2010. Cinco em 2011. Três em 2012. Duas em 2013. Uma em 2015. Quatro em 2016. Quatro em 2021. Uma em 2024. Eis o caminho até ao inédito.

Entre 2007 e 2016, Mark foi o rei do sprint. Ganhou 143 vezes nesses anos, 48 delas em grandes voltas, foi campeão do mundo em 2011. Perder uma chegada em pelotão compacto era notícia.

“Quebrar o estigma sobre saúde mental”

No entanto, no final de 2016, algo mudou no corredor da Ilha de Man. Em abril de 2017, contraiu mononucleose infecciosa, uma infeção viral causada pelo vírus Epstei-Barr, que exige muito repouso.

Com a doença vieram resultados piores e, segundo o que o ciclista confessou à GQ, em 2021, o “gatilho” para outro problema: a depressão, que lhe foi diagnosticada em 2018. “Passei de ser o melhor do mundo para um dos piores da noite para o dia”, confessou à BBC. Cavendish só conseguiu uma vitória em 2017 e outra em 2018 (nenhuma em grandes voltas), ficando a zeros em 2019 e 2020.

Em 2020 admitiu retirar-se. Manteve-se a competir e renasceu, desportivamente, em 2021, com um póquer de triunfos no Tour. Nos últimos anos, Cav tem falado permanentemente em “usar a plataforma” que tem para “quebrar o estigma sobre saúde mental”.

THOMAS SAMSON/Getty

Após erguer os braços pela 35.ª vez, aquele sprint, o sprint eterno, pareceu ser festejado por todo o pelotão. De Rui Costa a Tadej Pogacar, de Bini Girmay a Remco Evenepoel, todos foram abraçar o britânico, não importando se eram companheiros ou rivais. Talvez fosse, também, um sinal de devoção: quando Mark ganhou pela primeira vez no Tour, em 2008, 98% do pelotão da presente edição da corrida ainda não competia profissionalmente.

Com quase 16 anos entre a estreia a vencer e este sprint eterno, Cavendish é o ciclista da história da Volta a França com maior distância entre o primeiro e o (até ver) último triunfo na competição.

Tendo superado Eddy Merckx e consolidado ainda mais a sua lenda, o mais incrível é como toda esta glória de Mark surge com um certo ar a inesperado, a reviravolta. A reviravolta que conseguiu dar depois da incrível quebra de forma entre 2016 e 2020, voltando a conseguir bater os melhores; a reviravolta que deu depois da queda de há um ano, que pareceu acabar com o sonho; a reviravolta que deu depois de, logo na primeira etapa deste Tour, ter vomitado e corrido o risco de cortar a meta fora do controlo, sendo eliminado.

Cavendish deu a volta a tudo.

Resistiu, aguentou. Dedicou a sua vida, os últimos anos, à possibilidade de ter esta hipótese. De ter a meta à frente dele. Acelerou para tornar a possibilidade em realidade, a hipótese de eternidade em eternidade consumada. O trono é seu, Sir Mark Simon Cavendish.

POOL JAN DE MEULENEIR/Getty

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: tribuna@expresso.impresa.pt