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Dan Bigham não é ciclista profissional. É engenheiro de aerodinâmica, trabalhou na Mercedes e agora bateu o recorde mundial da hora

Bigham tem jeito para as duas rodas mas no último ano trabalhou nos bastidores, ajudando a Ineos a otimizar os seus desempenhos nos contrarrelógios. Algumas das suas ideias foram colocadas em prática na sexta-feira, num velódromo na Suíça. Resultado? Em 60 minutos correu 55,548 quilómetros, um novo recorde da hora em bicicleta

Lídia Paralta Gomes

Zac Goodwin - PA Images

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Depois de alguns anos de esquecimento e de mudanças de regras, a partir de 2014 o recorde da hora no ciclismo voltou a ser uma medalha desejada por muitos daqueles com queda para combater o relógio nas duas rodas. O veterano alemão Jens Voigt, na altura ciclista da Leopard Trek, foi o primeiro a consegui-lo depois da União Ciclista Internacional unificar as regras para a oficialização das marcas, fazendo 51,110 quilómetros em 60 minutos. Um mês depois, seria batido pelo austríaco Matthias Brandle.

Só no ano seguinte, três ciclistas bateram o recorde mundial (Rohan Dennis, Alex Dowsett e Bradley Wiggins), com o último melhor registo a pertencer a Victor Campenaerts, o belga que em 2019 havia colocado a contagem em 55,089 quilómetros, recorde conseguido em altitude, no velódromo mexicano de Aguascalientes. Daí para cá, vários ciclistas tentaram bater o ciclista da Lotto, mas sem sucesso. Até sexta-feira.

Na lista de todos os que tentaram bater o recorde da hora nos últimos anos estão antigos vencedores de grandes voltas, como Wiggins, especialistas em contrarrelógio, como Dennis ou Campenaerts, e atletas pouco ou nada conhecidos, de equipas da segunda divisão do ciclismo.

Mas não estará ninguém como Dan Bigham.

O britânico de 30 anos chegou ao Velódromo de Grenchen, na Suíça, equipado com as últimas tecnologias da Ineos, uma das equipas mais fortes do pelotão internacional. Mas Bigham, geralmente, não as usa: ele ajuda a desenvolvê-las.

Bigham é um ciclista amador que desde o início desta época é também engenheiro de aerodinâmica e performance na Ineos. Com alguns resultados de relevo no ciclismo de pista, o natural de Newcastle, de 30 anos, é, acima de tudo, alguém que quer usar a ciência ao serviço do ciclismo, levando uma das máximas que direcionou o ciclismo britânico a tantos sucessos internacionais nos últimos, a teoria dos “ganhos marginais”, ao mais ínfimo pormenor.

Na Suíça, usando um protótipo do fabricante de bicicletas Pinarello que ajudou a desenvolver, Bigham fez 55,548 quilómetros, praticamente mais quinhentos metros que Campenaerts. “É bastante épico”, disse o britânico no final da prova, onde agradeceu também à Ineos o apoio prestado, ele que já havia feito uma tentativa não oficial para bater o recorde, que acabou em falhanço. “O incontável apoio da Ineos foi o passo que faltava. Não só pelo equipamento, mas pela filosofia. Toda a intervenção a nível térmico, de nutrição, treino”, sublinhou.

INEOS

A aposta da Ineos não foi, claro está, inocente. Terá sido também uma forma de pôr em prática o trabalho de Bigham nos bastidores. O engenheiro tem tido um papel fulcral esta temporada na otimização dos desempenhos da Ineos nos contrarrelógios e a tentativa bem-sucedida de Bigham faz parte desse mesmo projeto, já que os dados serão utilizados para melhorar ainda mais a performance da equipa.

“Queremos criar uma planta para futuras tentativas de quebrar o recorde da hora mas isto não é algo limitado à pista, porque todas as semanas a nossa equipa está a competir em contrarrelógios na estrada e há muitos detalhes que temos de melhorar”, disse Bigham ao site de Ineos quando anunciou a iniciativa de tentar bater o registo de Campenaerts. Não se tratou só de desporto: este recorde foi um olhar para o futuro, de mão dada com a ciência.

Bigham até tinha sonhos mais virados para as quatro rodas quando entrou no ensino superior. Formado em Engenharia de Desporto Automóvel pela Universidade de Oxford Brookes, o inglês trabalhou durante um ano como engenheiro de aerodinâmica na equipa de Fórmula 1 da Mercedes mas abandonaria o objetivo algo desapontado. “Quando cheguei lá percebi que não era só champanhe e festas. Há muitas horas de trabalho, turnos noturnos e sacrifícios. Queria também treinar e correr e percebi que a Fórmula 1 provavelmente não era para mim”, escreveu no site da sua empresa, a Wattshop, dedicada a peças para bicicletas.

De regresso à universidade, Bigham direcionou então os seus estudos para o ciclismo, dedicando-se também à prática da modalidade, conseguindo inclusive alguns títulos nacionais em pista. Depois de terminar os estudos superiores, encontrou trabalho como engenheiro de aerodinâmica na Pace Insights, empresa que dava apoio a várias equipas olímpicas britânicas antes de dar nova oportunidade ao ciclismo, mas nunca passando de um nível semi-profissional.

Antes de trabalhar com a Ineos, Bigham ajudou a federação dinamarquesa de ciclismo, que com o seu apoio quebrou vários recordes mundiais na pista. Uma pista onde agora fez história, colocando o seu nome entre os recordistas da hora. Este ano, Bigham, mesmo com estatuto de amador, foi campeão britânico da perseguição na pista e medalha de prata no contrarrelógio nos campeonatos nacionais de estrada.

Curiosamente, a permanência no topo poderá estar ameaçada por um dos ciclistas que Dan Bigham ajuda com os seus conhecimentos de aerodinâmica. Filippo Ganna, o extraordinário contrarrelogista italiano, campeão mundial da especialidade em estrada e ciclista da Ineos, já deixou claro que esse é um objetivo a curto prazo.