O Benfica acabou o ano passado com uma vontade: reforçar o seu peso na sua SAD. Já tinha 67% do capital – pelo que já a controlava –, mas queria chegar aos 95%. Foi por isso que lançou uma oferta pública de aquisição (OPA) em que se propunha a comprar as ações nas mãos de outros acionistas minoritários. Argumento oficial: proteger-se de investidores hostis que pudessem querer adquirir a SAD e ter, assim, maior facilidade se quisesse encontrar parceiros por si escolhidos.
Anunciada a oferta em novembro, desde cedo se percebeu que havia dúvidas do regulador que tem de avaliar a operação. O financiamento da OPA, em que o clube, através da Sport Lisboa e Benfica SGPS, iria gastar até 32 milhões de euros para comprar as ações da SAD que não detinha, foi um dos pontos que trouxe dúvidas à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). Só agora, em março, e depois de um pedido expresso do regulador, é que o Benfica explicou ao mercado como iria garantir esse dinheiro.
O financiamento é, agora, um dado histórico, porque a OPA está a cair, ainda que formal e burocraticamente não tenha sido decretado o seu fim. A CMVM indicou ao Benfica que decidiu que a operação iria falhar, por a forma encontrada para o financiamento ser irregular, aguardando agora a obrigatória posição do clube sobre essa deliberação. Antes de dar a sua pronúncia, a Benfica SGPS avançou com um pedido para ser ela própria a retirar a OPA, à luz da alteração das circunstâncias causa pela pandemia de covid-19. O regulador presidido por Gabriela Figueiredo Dias terá de olhar para essa argumentação.
Aliás, o regulador deixou isso claro na nota que uma fonte oficial enviou às redações: “A CMVM confirma a receção do pedido de retirada da oferta pública de aquisição (OPA) pelo oferente Sport Lisboa e Benfica, SGPS, S.A., que será objeto de análise detalhada. Aguarda ainda a pronúncia do oferente quanto ao projeto de decisão do indeferimento do pedido de registo de OPA”.
Certo é que, publicamente, a indicação do chumbo da OPA chegou antes do pedido de revogação do Benfica.
Além de tudo isto, a CMVM tinha, no início da semana, pedido ao Benfica que revelasse publicamente o modelo de financiamento que o regulador considerava irregular – sem o qual as ações da SAD estavam suspensas, não podendo ser compradas ou vendidas. Foi esta terça-feira à noite que o Benfica fez essa divulgação – aliás, foi por isso que depois decidiu que as ações da SAD poderiam voltar a ser negociadas esta quarta-feira.
Financiamento seria conseguido através do estádio
O financiamento da OPA, que levantou os alertas na CMVM, passava pela utilização de uma triangulação entre empresas do grupo.
Até ao ano passado, a Benfica SAD, detida em 67% pela Benfica SGPS, era a dona da Benfica Estádio. Contudo, a Benfica SAD vendeu a Benfica Estádio à SGPS, que era até aí apenas sua acionista indireta. Também aconteceu o mesmo com a Benfica TV. Aliás, a SGPS tem de pagar à SAD 99,3 milhões de euros por estas transações, sendo que esse pagamento será feito ao longo de 25 anos, de acordo com o relatório e contas do primeiro semestre.
Segundo o comunicado de ontem, em outubro, a Benfica Estádio e a Benfica SAD assinaram um novo contrato para que esta última possa, por ser a detentora do futebol profissional, desfrutar do estádio que pertence à outra empresa com a qual, agora, não tem uma relação acionista direta. O contrato que existia estava em vigor desde 2003, tendo sido alterado agora em 2019, o ano da mudança de mãos.
No novo contrato, a cada ano, há uma prestação mínima a pagar: 4,5 milhões de euros. A este valor pode ser acrescido um montante variável. Estendendo-se até 2041, há um valor certo a pagar pela SAD à Benfica Estádio: uma soma de 94,5 milhões de euros.
Nem tudo sai da SAD mas vai acabar na SAD
Só que o grupo decidiu que haveria um pagamento antecipado de 62 milhões de euros, assumindo-se um desconto face àquele montante de 94,5 milhões – o Benfica diz que seguiu uma taxa de desconto aplicável a este tipo de ativos, que reduz o valor em 4% ao ano.
Ora, dos 62 milhões que teriam de passar, agora, da SAD para a Estádio, há uma parte que não sairá da SAD: 33 milhões de euros, que servirão de “compensação da dívida existente da Benfica Estádio perante a Benfica SAD”. Ou seja, anula-se uma dívida que existia entre as duas empresas.
Ficam a faltar 29 milhões de euros. É esse o montante que tem de ser pago pela Benfica SAD à Benfica Estádio. E a Benfica Estádio, com esse dinheiro, iria devolver empréstimos (denominadas prestações acessórias) que tinham sido concedidos pela SGPS e que a SGPS pediu que fossem devolvidos. Precisamente nos mesmos 29 milhões de euros.
Ora, o dinheiro da SAD chegaria, assim, à SGPS, que iria usar o dinheiro para financiar a OPA. De recordar que precisava de até 32 milhões de euros, para pagar aos acionistas: José António dos Santos, conhecido por rei dos frangos, bem como a Olivedesportos, de Joaquim Oliveira, faziam parte, aquando do lançamento da oferta, da estrutura acionista. (Na verdade, o montante até teria de ser maior, já que o Benfica também se comprometeu a comprar as ações da SAD nas mãos dos atuais membros dos órgãos sociais, onde se destaca, pela dimensão do número de títulos, Luís Filipe Vieira, que poderia receber mais de 3,7 milhões de euros).
É por esta triangulação entre empresas do grupo que a CMVM vê a SAD a assistir financeiramente a SGPS para que esta reforce o seu peso na SAD, o que não pode acontecer quando está a acontecer uma OPA. Por sua vez, o Benfica recusa essa ideia e defende que cada uma das operações que realiza tem racionalidade e fundamento económico, não tendo como fim o financiamento da OPA.
Divulgado ao mercado este modelo de financiamento, mesmo que não venha a ser posto em prática, falta agora decidir de que forma vai acabar a OPA do Benfica: se com um chumbo do regulador, se com a retirada do próprio. E sabendo-se já que, pelo clube, o caso poderá acabar nos tribunais.