Costuma chamar-se à classificativa de Fafe a catedral dos ralis, mas melhor seria chamar-lhe o estádio olímpico. Desde o Salto do Pereira à descida do Confurco e do salto da Pedra Sentada à tomada de tempo há tanta ou mais gente que numa final da Liga dos Campeões. Se, com os Concertos Promenade, os britânicos inventaram a síntese perfeita entre um concerto de música clássica e o ambiente de um jogo de futebol, na mais famosa das classificativas do Rali de Portugal – Fafe/Lameirinha – há as emoções do automobilismo, abrilhantadas por um anfiteatro de entusiastas.
Assim foi no último dia (este domingo, 14 de maio) da 56.ª edição do Rali de Portugal. Verdade seja dita, o público vibrou como sempre, mas nos lugares da frente tudo estava decidido desde a véspera: Kalle Rovanperä/Jonne Alttunen em Toyota, tinham acabado o dia de sábado com uma vantagem de praticamente um minuto sobre Dani Sordo/Candido Carrera da Hyundai e limitaram-se a gerir a prova, como as equipas de futebol à espera do apito final do árbitro.
Isso foi patente na forma como os pilotos da frente abordaram outra das mais notáveis classificativas deste rali: Cabeceiras de Basto. Assisti à passagem dos primeiros num sítio lindíssimo, quer pela paisagem envolvente, quer pelo traçado: trata-se da Zona Espetáculo das Torrinheiras que nunca está demasiado cheia de gente, pois é praticamente impossível lá chegar sem ser a bordo de um 4x4. Numa zona sinuosa predominantemente a descer, apenas os Ford de Ott Tänak e Loubet deram um arzinho da sua graça. Os restantes cumpriram sem deslumbrar, mesmo Kalle Rovanperä no seu Toyota ou o seu perseguidor Dano Sordo em Hyundai: trajetórias conservadoras, atravessadelas q.b., nada que fizesse levantar o povo. Até se acabarem os WRC e chegarem os dois Skoda 4x2 que disputavam a liderança do WRC2.
Há coisas que são só para verdadeiros apreciadores. A passagem nas Torrinheiras (classificativa de Cabeceiras de Basto) é uma delas. Uma aldeia pitoresca, situada entre Cabeceiras e Salto, uma paisagem deslumbrante com serra, bosque e as alturas do Gerês ao fundo. E um acesso reservado a quem tenha boas pernas e/ou um 4x4. Uma hora antes da passagem do primeiro carro já lá havia umas dezenas de pessoas, estava um frio de rachar, apesar de o sol brilhar e, para o deslumbramento ser completo, uma manada de garranos (cavalos locais semi selvagens) divertia-se a galopar prados fora.
De faca nos dentes
Aí sim, houve espetáculo a sério, com Greensmith e Solberg a passarem a fundo, completamente de lado, aproveitando o estradão ao milímetro e fazendo sua a velha máxima: “não lhes mostres é medo...” Uma luta que vinha desde a véspera e só se resolveu no fim da segunda passagem por Fafe. O britânico ganhou ao sueco pela diferença mínima: um segundo! Com uma subtileza: na véspera, no final da super-especial de Lousada, Solberg tinha feito o equivalente aos futebolistas que despem a camisola para celebrar um golo, ou seja, fez uma série de piões. Não levou cartão amarelo, mas o seu equivalente nos ralis: um (precioso) minuto de penalização.
Moral da história: ter coração é o que diferencia um ser humano do ChatGPT mas também convém ter cabeça…
Coração, cabeça e estômago, como no romance de Camilo Castelo Branco, teve, de facto, Kalle Rovanperä que venceu pela segunda vez consecutiva em Portugal. Duas vitórias que já lhe dão acesso a uma seleta galeria de heróis onde figuram Kankkunen, Sainz, McRae, Mäkinen e Loeb e o projetam para o topo do Mundial deste ano (é também campeão em título). A Toyota ganha em Portugal pela quarta vez consecutiva (ainda que com pilotos diferentes, igualando o recorde da Lancia em 1987/91) e Dani Sordo, nunca tendo ganhado, é o campeão dos pódios em Portugal: sete no total e três consecutivos.
Recapitulando, Rovanperä (Toyota), Sordo (Hyundai) e Lappi (também Hyundai) nos três primeiros lugares, seguindo-se Ott Tänak (Ford) e Thierry Neuville (Hyundai). Greensmith venceu o disputadíssimo WRC2. Armindo Araújo/Luis Ramalho foram os melhores portugueses (a 12.ª vitória de Araújo nesta sub-prova lusa) e Ricardo Sousa /Luis Marques venceram a competição referente à Peugeot Rally Cup Ibérica.