O abraço entre Gianluca Vialli e Roberto Mancini depois de conquistada a Europa em forma de torneio foi uma sova na garganta das testemunhas. Os corpos colavam-se como se colam os dos irmãos. Havia lágrimas e desabafos, a maioria mudos certamente. A maldita doença, um cancro no pâncreas, concedeu a Gianluca uma trégua, permitindo-lhe reviver a dupla maravilha da gloriosa Sampdoria de tempos idos e levantar o troféu de campeão europeu, tal como foi em 1996, com a camisola e braçadeira de capitão da Juventus. Vialli morreu esta sexta-feira, aos 58 anos.
Depois de vários anos a lutar contra a doença, em abril de 2020 o ex-futebolista foi dado como recuperado. Antes disso juntou-se depois à federação italiana para servir como chefe de delegação, mencionando que era tudo “emocional” e que assim se sentiriam “mais jovens”, transformando-se numa inspiração para todos. Em meados de dezembro último, no entanto, deu conta de que abandonava os trabalhos na seleção italiana para voltar ao ringue contra o cancro, “o companheiro indesejado", como chegou a dizer.
“O objetivo é utilizar toda a minha energia física e mental para ajudar o meu corpo a ultrapassar esta fase da doença, para que eu possa participar em novas aventuras o mais rapidamente possível e partilhá-las com todos vocês”, anunciou então.

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No livro “Goals” refletiu sobre este braço de ferro. “Não sou um guerreiro”, garantia. “Não estou a combater o cancro. É um inimigo demasiado forte e eu não teria qualquer hipótese. Sou um homem que tem a sua jornada e o cancro juntou-se a mim nessa jornada… o meu objetivo é continuar a andar, continuar a mexer-me até que ele se canse e me deixe sozinho.” Agarrou-se a alguns ensinamentos e filosofia asiáticos para o ajudar a levar a vida com positividade. Chamou-lhe “força espiritual” e “armadura”.
Era um cavalheiro, lê-se em alguns textos publicados, que deixou frases como: “Não acreditem em quem vos diz que o futebol é uma guerra. É um desporto, um jogo e jogas com os teus companheiros”. Num dos episódios de “Alessandro Cattelan: One Simple Question”, da Netlfix (2021), onde se busca a essência da felicidade, o futebolista entregou então numa bandeja dourada e invisível a forma como encarava a vida e também o que queria deixar aos filhos. “Focam-se mais no que fazemos do que no que dizemos. Creio que terei menos tempo para ser um bom exemplo agora que sei que não vou morrer velho. Oxalá viva muitos anos, mas sinto-me muito mais débil. Por isso, antes de tudo, pergunto-me se estou a dar um bom exemplo às minhas filhas. Faço tudo para ser um exemplo positivo”, admitiu.
E continuou: “Tento mostrar-lhes que a felicidade depende das expectativas que tens na vida. Tento dizer-lhes para não serem vaidosas ou arrogantes, para escutarem mais e falarem menos, para serem melhores pessoas a cada dia, para rirem mais e ajudarem os outros. Para mim, esse é o segredo para a felicidade. Sobretudo, tento ajudá-las a encontrar a vocação delas. Creio que a finalidade da vida é encontrar um propósito. Quando há um propósito pelo que vale a pena resolvermos problemas, chatearmo-nos e alegrarmo-nos, é mais fácil sentir felicidade. Tento também ensinar-lhes que na vida está tudo bem por sermos vulneráveis, por chorar ou estar triste. Há que aceitar essas emoções e ter noção que hão de passar. Se nunca estás triste, como sabes quão bom é estar feliz?”
Uma das primeiras declarações e reações à morte de Vialli saiu da boca de Graeme Souness, um tipo duro e que desabou a falar do ex-companheiro dos tempos da Sampdoria. “Não consigo dizer-vos quão boa pessoa era”, começou por dizer o escocês na Sky News, com os olhos derrotados. “Esqueçam o futebol por um minuto, era simplesmente uma alma bonita. Era verdadeiramente um bom ser humano. Era fabuloso estar ao pé dele, era tão divertido, tão caloroso, era um jogador fabuloso. Não quero falar do futebol dele, mas sim da pessoa. Que ser humano, acima disso, que ser humano.”

Alessandro Sabattini
Durante o Euro 2020, no dia do seu aniversário, levantou-se no lugar onde tomavam as refeições e disse: “O mister disse que podemos ganhar, por isso vamos buscar o maldito troféu”. As imagens daquele 9 de julho, nas entranhas da seleção italiana, estão imortalizadas no documentário “Azzurri, Road to Wembley”, da Netflix. Depois riu, levantou o copo e os futebolistas cantaram “Luuuuca, Luuuuca”. E ele emocionou-se.
Como futebolista era uma besta faminta, um avançado como imaginamos os avançados italianos dos anos 90, que pedalam, são chatos e vão atrás da dança das redes da baliza de qualquer maneira. Era bom de bola. Ao longo de mais de 600 jogos com as camisolas de Cremonese, Sampdoria (onde foi protagonista de um dos maiores contos de fadas que o futebol já viu), Juventus (ahh, a dupla com Ravanelli…) e Chelsea, marcou mais de 250 golos. Com a seleção italiana, com quem fez 59 jogos e 16 golos, participou nos Campeonatos do Mundo de 1986 e 1990 e ainda no Europeu de 1988.
No museu lá de casa, o futebolista (porque são futebolistas para sempre), natural de Cremona, via descansar a glória nas muitas medalhas que conquistou, nomeadamente de vencedor da Liga dos Campeões – uma conquista a que colaria a palavra “alívio” por ter perdido uma final em 1992 contra o Barça –, Taça UEFA, Taça das Taças e Serie A, com Sampdoria e Juventus. O italiano descobriu que os jogadores são fabricadores de memórias e de bons momentos para quem os vê. Um golo pode mudar a vida de alguém, disse algo do género.
Os últimos três anos de carreira aconteceram em Londres, com a farda do Chelsea, onde começou a carreira de treinador em 1997/98, começando até como jogador-treinador. Por ali, com o apito na boca, conquistou a Taça das Taças, em 1998, e outros importantes troféus. Na temporada 2001/02 despediu-se do futebol profissional, no segundo escalão inglês, como treinador do Watford.

John Ingledew
Na memória de todos os que viram o tal documentário ficará a imagem de Gianluca Vialli, durante os penáltis na final, virado de costas para o santuário verde, encarando os sofridos adeptos. De braços cruzados, mirava o horizonte que não existia. Dava um gole numa água, lentamente, olhava à volta.
Quando Jorginho falhou o seu pontapé, leu-o na cara dos compatriotas que miravam o jogo. Mancini aproximou-se e contou-lhe o segredo. Gianluca, que nada viu, fez um gesto com a mão como se explicasse o que aconteceu. E voltou para o lugar mais solitário do mundo. Um esgar denunciava o medo. Voltou a tragar a água. A seguir, as boas notícias. Finalmente, a glória em Wembley, que fugiu em 1992. Braços abertos e desapareceu de cena. O abraço com Mancini, com água nos olhos e tanta história naquele aperto, veio depois.