Se sentiu que o título deste texto é provocatório, bom, é porque ele tem de facto a intenção de provocar. Se essa intenção prévia depois é cumprida ou não, depende obviamente de uma série de fatores, começando pelo leitor e pelo contexto em que estava inserido no momento em que o leu, mas é esse intento que guia todo o plano subjacente - sendo o plano mais macro, no caso desta análise, levar o leitor a interessar-se por futebol feminino, tão mediaticamente desprezado que é raro vê-lo nos muitos canais desportivos e noticiosos de Portugal; e, no plano mais micro, traçar as linhas gerais que possam guiá-lo ao ver o Finlândia-Portugal desta tarde.
Serve esta modesta analogia para apontar o que a seleção feminina portuguesa tem, acima de tudo, desde 2014, ano em que Francisco Neto assumiu a liderança da então 43.ª classificada do ranking mundial da FIFA, agora 30.ª: uma clara intenção de adotar um “jogar à Portugal”.
Este não é um qualquer assombro nacionalista, mas uma expressão que tanto o selecionador como a sua adjunta, Marisa Gomes, têm utilizado amiúde, dentro do grupo, na comunicação social e em formações, para descrever aquilo que é pretendido na seleção.
O lema, ao contrário do que pode parecer, não é meramente platónico: tem correspondência com a realidade porque parte parte dela para idealizar o jogo que pretende implementar. Ou seja, é a partir das características da jogadora portuguesa, das quais sobressaem a qualidade técnica ímpar e a inteligência, que nasce o jogar à Portugal, porque o talento precisa de contexto e, consequentemente, da explanação dos princípios individuais e coletivos num sistema que não é muito comum encontrar atualmente: o 4-4-2 losango.
A ocupação teórica dos espaços no sistema 4-4-2 losango
Tribuna Expresso
A disposição da seleção feminina não é capricho de treinador, até porque, numa seleção, dificilmente poderá haver grande obstinação a esse nível, dado o escasso tempo de treino existente, com jogadoras de proveniências tão distintas, o que obriga a que haja uma rigorosa hierarquização daquilo que se pretende.
Para exacerbar aquelas tais características da jogadora portuguesa, que não é propriamente um portento físico, pelo menos por padrão, surgiu o 4-4-2 losango, uma estrutura que permite facilmente uma grande ocupação do corredor central, por natureza, potenciando o jogo associativo que mais beneficia as lusas.
Em organização ofensiva, a construção apoiada das portuguesas é facilitada pela presença próxima da ‘6’ (habitualmente Dolores Silva) à frente do setor defensivo, assim como pelo posicionamento das duas ‘8’ (Tatiana Pinto, Vanessa Marques, Fátima Pinto...), que frequentemente atraem as médias adversárias com o seu deslocamento, seja ele mais interior ou mais exterior, e permitem, assim, que a bola entre ou no corredor lateral mais próximo, para onde habitualmente descai a avançada mais perto (Diana Silva, Jéssica Silva, Ana Capeta...), ou, então, particularmente num espaço de ouro que é ocupado pela ‘10’, à frente do setor defensivo adversário.
É essa ‘10’, que acaba por ser uma mescla entre média e avançada, que mais beneficia em termos individuais neste sistema, pela liberdade ofensiva que habitualmente lhe é concedida. E é assim que Portugal consegue exacerbar o que tem de melhor a sua jogadora mais influente, a capitã Cláudia Neto (Fiorentina), que sabe enquadrar-se para receber entre linhas e definir na perfeição a prossecução do ataque, habitualmente solicitando as desmarcações de uma das avançadas, já que ambas tendem a procurar as costas da defensiva adversária.
Maja Hitij
Se o losango facilita e amplifica a proximidade das jogadoras no jogo no corredor central, também tem - como têm todos os sistemas, sejam eles quais forem - contras, começando, obviamente, pela largura. Não há, com esta disposição, tanta ocupação dos corredores laterais como noutros sistemas, o que implica perceber, novamente, que jogadoras temos para poder providenciar temporariamente essa largura e essa profundidade. Teoricamente, o contra pode ser facilmente mitigado se as características das nossas laterais cumprirem com esses pressupostos ofensivos, e é também por isso que a seleção utiliza frequentemente uma extremo de origem adaptada a lateral, Ana Borges, como aconteceu no último jogo contra a Finlândia (1-1), já em novembro de 2019, quando ainda ninguém imaginava uma pandemia que atrasaria largamente esta qualificação.
Em organização defensiva, essa mesma largura também pode ser problemática, dependendo do posicionamento adotado na pressão, algo que Francisco Neto também não entende como estanque, sendo estrategicamente ajustada consoante o adversário. Se as avançadas podem manter um posicionamento mais central, junto às centrais adversárias, obrigando assim as médias a correrem mais para se chegarem às laterais adversárias...
Em organização defensiva, o 1º momento de pressão de um 4-4-2 losango que opte por ter as avançadas a pressionar as centrais adversárias
Tribuna Expresso
... também podem alargar a sua zona de intervenção e serem responsáveis por saltar na pressão às laterais adversárias, como aconteceu frente à Escócia (vitória por 1-0), deixando as centrais a serem controladas pela '10', que sobe para assumir essa pressão, formando então um trio defensivo pressionante, praticamente assumindo então um 4-3-3 em momento defensivo.

Quando são as avançadas a pressionar as laterais adversárias, o 4-4-2 losango praticamente passa a 4-3-3 em momento defensivo, devido ao adiantamento da '10'
Tribuna Expresso
Nenhuma das fórmulas é mais 'certa' ou mais 'errada': são, como todas as outras, escolhas feitas pelo treinador e pela sua equipa técnica para aproximar a seleção do seu rendimento máximo, tendo em conta, novamente, as jogadoras portuguesas, assim como, claro está, o adversário que se tem pela frente: no caso da Finlândia, habitualmente em 4-4-2, adeptas do jogo simples e direto, fortes fisicamente e eficazes nos esquemas táticos - foi precisamente num canto, já nos descontos, que as finlandesas empataram o jogo anterior frente a Portugal.
Também não há receita perfeita para contrariar esse jogo (bom, se não cedermos cantos...), mas há, mais uma vez, intenções que se podem tornar em padrões: ter mais bola do que as adversárias, prolongar os ataques, tornando-os mais demorados e impacientando as mentes alheias, e, em termos defensivos, ter sempre uma pressão próxima da bola, para não permitir que ela passe muito tempo a ser lançada pelo ar.
Independentemente da abordagem selecionada por Francisco Neto para o Finlândia-Portugal desta tarde, certo é que a seleção portuguesa depende apenas de si própria para se qualificar pela segunda vez na história para um Europeu: tem 16 pontos, os mesmos das finlandesas, no grupo E, quando faltam apenas dois jogos para finalizar a qualificação; em 3.º seguem as escocesas, que já estão fora, com apenas 9 pontos. Se o 1.º classificado do grupo garante logo presença no Euro a disputar em Inglaterra, o 2.º classificado ainda terá de disputar um play-off.
Aconteça o que acontecer, vale a pena recordar esta entrevista de Francisco Neto à Tribuna, quando o selecionador ainda estava apenas a antever a qualificação, que ainda não se tinha iniciado:
"Mas o que é mais giro nisto tudo e o que me agrada mais é isto: irmos para uma qualificação a acreditar que podemos lá estar. É o libertar da jogadora portuguesa. Isso é que é o grande passo que demos. É uma coisa brutal, delas. Elas acreditam que podem lá estar e vamos trabalhar para isso. Metade está feito já: é elas acreditarem nelas próprias."
E o leitor, já está convencido? Quanto menos formos, mais tempo demoramos...