Desde que Pep Guardiola chegou a Manchester, em 2016/17, o mais comum para adeptos e analistas, quando olham para o onze inicial do City, é não perceber nada. Ou, então, achar que até já se sabe antever onde encaixam os jogadores, mas, quando o apito soa, constatar que afinal as peças não estão propriamente nos espaços mais previsíveis.
A riqueza da adaptabilidade, em questões de pormenor, da equipa de Pep Guardiola não belisca, habitualmente, aquele que é o padrão de jogo do Manchester City, ainda que haja sempre a exceção a confirmar a regra, como foi o caso daquela eliminatória de má memória (e, com Guardiola, são quase sempre as eliminatórias as de má memória... como em Munique) em Alvalade, quando os ingleses quiseram tanto contrariar o sistema do Lyon que acabaram eliminados dos quartos de final da Liga dos Campeões (3-1).
Tal como a razão nunca se dissocia da emoção, também a composição da própria equipa nunca ignora a do adversário. O que sempre fez a diferença em Guardiola, no Barcelona, no Bayern Munique e no City, é que a montagem da própria equipa habitualmente parte de uma premissa mais ofensiva do que defensiva: onde é que o adversário deixa espaços para podermos feri-lo?
Às vezes uns, às vezes outros, às vezes todos ao mesmo tempo: os pormenores ofensivos do Manchester City
Tribuna Expresso
A resposta a essa pergunta implica, por vezes, mudanças camaleónicas nas estruturas da equipa de Pep, não no sentido hiperbólico da palavra, mas no estrito: porque o camaleão muda a cor da pele consoante o ambiente em que se encontra, mas não deixa de ser um réptil, com uma longa língua viscosa que envolve a presa em menos de um piscar de um dos seus olhos que nunca deixam de ser esbugalhados.
Ou seja, por muito que o camaleão possa mudar de cor, não lhe podemos pedir que seja um crocodilo. O que nos leva à pergunta oposta à anterior, que serve de premissa a muitos outros treinadores, que habitualmente não se chamam Guardiola: como é que podemos impedir o adversário de nos ferir?

Quando está a atacar e perde a bola, o City é obrigado a impedir imediatamente o contra-ataque adversário - não o conseguindo, pode sofrer golo, como aconteceu frente ao Tottenham, que tem em Kane e Son uma dupla muito perigosa em transição
Tribuna Expresso
Nenhuma destas duas perguntas é, obviamente, mutuamente exclusiva, bem pelo contrário, porque nenhum momento do jogo é independente do outro, mas é a importância que o treinador dá à resposta a cada uma delas que acaba por definir o jogar da equipa e qual o tipo de jogadores que vai interpretá-lo.
Se o Manchester City teve um início de época tépido, que desiludiu até o mais fervoroso fã de Guardiola, a razão pareceu estar na inversão da importância dada pelo treinador a essas duas questões.
Mais do que ciente - talvez até queimado - pelos riscos que o jogo tremendamente criativo e ofensivo acarreta, o treinador do City puxou o travão de mão na junção de determinados criativos e no posicionamento de alguns jogadores, essencialmente para precaver o que sempre surge como maior imperfeição num jogo que prima pelo ataque: a transição defensiva e a respetiva defesa do contra-ataque alheio.
Assim sendo, começou a época num incaracterístico 4-2-3-1, para quem sempre tinha como base o 4-3-3, ainda que as tais adaptações de pormenor nem sempre nos dessem a mesma estrutura explanada em termos ofensivos. Seja como for, aquele duplo pivô, às vezes na parelha pleonástica Rodri & Fernandinho, aparentemente mais planeado para estancar as ofensivas adversárias do que para garantir condições de progressão, acabou por deixar o treinador espanhol pouco satisfeito, obrigando-o a voltar atrás, a um 4-3-3 que afinal é um 3-4-3 em posse (que nada tem a ver com os 3-4-3 que vemos no futebol português atualmente, bem entendido).
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Se Pep Guardiola é hoje, inegavelmente, um dos melhores treinadores da história do futebol (talvez até o melhor), isso muito se deve à sua capacidade de reflexão (e, às vezes, até overthinking, como o próprio já admitiu) e experimentação, que lhe permitem voltar, de tempos a tempos, ao jogo que considera essencial. E que lhe permite reconhecer, bom, quando há borrada, e quando não está satisfeito com o seu próprio trabalho e com o da equipa. E não apenas por perder - a última derrota foi a 21 de novembro de 2020, frente ao Tottenham de José Mourinho, por 2-0 -, mas por algo que antecede essa consequência.
"Foi no jogo contra o West Bromwich, que até poderíamos ter vencido com as três oportunidades incríveis que tivemos no final", começou por explicar, referindo-se ao empate a um golo frente a um rival modesto, em dezembro do ano passado. "Depois desse jogo, senti que esta não era uma equipa que eu reconhecesse. Não gostei do que vi", admitiu. "Até poderíamos ter ganhado tanto ao Tottenham como ao West Bromwich, mas não gostei da forma como jogámos. Falámos entre nós, Juanma [Lillo], Rodolfo [Borrell], Manel [Estiarte] e Txiki [Begiristain] e disse que tínhamos de voltar ao princípio", contou, referindo-se à parca criação de oportunidades de golo dessa altura. "Começámos a reconstruir a equipa a partir daí. Tivemos sucesso no passado e tivemos de voltar ao nosso jogo posicional, a mover a bola mais rapidamente, a passá-la mais vezes, a ficar mais nas posições, a correr menos com a bola", pormenorizou.
Não se pode dizer que o regresso ao passado não tenha funcionado: depois do tal empate que desiludiu o treinador frente ao West Bromwich, o City ganhou 15 jogos consecutivos - um novo recorde no futebol inglês.
Incluindo uma vitória de 4-1 contra o Liverpool, em Anfield (que Guardiola teve a humildade de reconhecer que provavelmente seria bem diferente caso o Kop tivesse adeptos), que acabou por ter muito daquilo que Guardiola foi repescar às origens: "Voltámos a fazer o que fazíamos em épocas anteriores, com os extremos mais abertos e mais altos, com os jogadores posicionados, a esperar que a bola lhes chegue. Assim a circulação é mais rápida e quando perdemos a bola estamos bem posicionados para transitar."

O posicionamento médio dos jogadores do Manchester City contra o Liverpool
SofaScore
E o tal duplo pivô, desapareceu? Mais ou menos. Na verdade, ele continua a existir, mas numa cor diferente. Quando o City constrói a partir de trás, quem se junta agora ao '6' Rodri é o médio João Cancelo, que larga a pele de lateral e utiliza a sua qualidade técnica para a construção no meio (incomparavelmente superior a Kyle Walker, que também já passou por ali, assim como Zinchenko; e, muito antes disso, lembra-se do ex-lateral Philip Lahm?), pelo menos enquanto a equipa tem a bola, para permitir que os dois médios de raiz, Gundogan e Bernardo Silva (Kevin de Bruyne está lesionado), possam estar mais livres e ocupar espaços mais altos, atrás da segunda linha de pressão adversária, e, consoante o fecho dos espaços, mais por fora ou mais por dentro, para receberem entre corredores (half spaces, como lhes chamam) ou atraírem adversários.
Isto também proporciona a criação de contextos mais vantajosos para os jogadores com maior capacidade individual desequilibrarem, o que foi uma das chaves do desbloqueio do City. Com Sterling e Mahrez bem altos e abertos, à esquerda e à direita, respetivamente, e super criativo Foden como falso 9, há um exacerbar de situações de um contra um nos corredores laterais, o que permite um precioso avolumar de situações de finalização junto da área, onde aparecem os médios a concretizar - Gundogan é o melhor marcador da equipa na Premier League, com 9 golos.
Mais atrás, a segurança de um trio de defesas construtores - no caso de Anfield, Zinchenko, que passa mais a central do que lateral, Rúben Dias e John Stones -, que tem permitido a salvaguarda de erros, a atacar e a defender, e já somou uma série de clean sheets que raramente se viram no início da época.
E, voltando atrás, Guardiola voltou a dar um passo em frente. A diferença entre um remédio e um veneno, às vezes, está na dose.