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A casa às costas

“Disse ao Godinho Lopes que nunca o perdoaria. Prometi à família que alugava um autocarro para irem ver a final da Taça e fomos despedidos”

Miguel Cardoso licenciou-se em Educação Física, deu aulas, fez a tropa, o mestrado e esteve oito anos na formação do FC Porto a apreender a cultura do clube e os conhecimentos de várias figuras que por lá passaram, entre elas Ilídio Vale e José Mourinho. Como adjunto de Domingos Paciência, com quem esteve seis anos, deu o salto. Na segunda parte deste Casa às Costas, revelará histórias dos anos passados fora já como treinador principal e explica o gesto no Bessa, há um ano, quando era treinador do Rio Ave. Esta entrevista, que agora republicamos, foi a mais lida da Tribuna Expresso em 2022

Alexandra Simões de Abreu

Juan Manuel Serrano Arce

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É natural da Trofa. Filho de quem?
O meu pai, José Manuel, é licenciado em Educação Física. Foi treinador de natação e de futebol, e era chamado professor Cardoso da Trofa. Fez um percurso como treinador de futebol cujo ponto mais alto foi no Leixões, mas esteve pouco tempo. A minha mãe trabalhava numa empresa alemã na Trofa, fazia tudo o que era ligação à parte internacional da empresa, porque falava muito bem alemão. Tem um nome curiosamente de origem alemã, que vem da avó, Edviges.

Tem irmãos?
Tenho, o Luís Cardoso, três anos mais novo, que também tirou Educação Física e também tem percurso como treinador. Trabalhou no Boavista, esteve no Estarreja e no Trofense. Esteve muito tempo ligado à coordenação da formação quer no Trofense, quer no Famalicão e foi treinador do Famalicão. Temos dois ou três momentos muitos giros em que nos cruzamos. Um foi num FC Porto B-Famalicão em que o meu irmão foi o treinador porque o treinador principal tinha sido castigado; eu era adjunto do Bandeirinha na equipa B do FC Porto. Cruzámo-nos mais tarde, era eu adjunto do Domingos Paciência no SC Braga e o meu irmão adjunto, no Boavista. Foi num jogo-treino, em Braga, temos uma fotografia desse momento, ele vestido à Boavista e eu à Braga.

O que dizia querer ser quando fosse grande?
É uma boa pergunta, mas não tenho ideia. Sempre fui um menino muito aplicado, sempre vi o meu trabalho, o meu esforço, a minha aplicação no que fazia como sendo aquilo que me iria levar ao meu futuro.

Não deu mesmo dores de cabeça aos pais?
Não. A minha infância é passada na rua e na minha casa a brincar com os meus amigos. Ou em casa dos meus avós maternos que têm uma influência muito grande na minha educação, nos meus valores, na minha forma de estar na vida. Foi um casal tão particular na vida, como na morte. A minha avó faleceu e o meu avô disse-nos nesse dia que queria morrer também e passado dois dias faleceu. Transformou a nossa vida porque havia de facto uma ligação quase umbilical à casa deles, onde passávamos os Natais, as Páscoas, seguíamos o compasso. Os meus pais trabalhavam e nós passávamos muito tempo ali, na rua, com as portas de casa abertas.

Qual foi o primeiro desporto que começou a praticar?
Eu joguei futebol federado a um nível muito baixo no Trofense e durante pouco tempo. Devia ter uns 13 ou 14 anos. Foi dois anos no máximo.

Miguel Cardoso em bebé

Miguel Cardoso em bebé

D.R.

Nunca sonhou ser jogador de futebol?
Não, eu percebi que não era muito dotado para a coisa. Gostava e ficava horas e horas na rua com diferentes tipos de jogos, mas sempre percebi que o meu irmão é que poderia e deveria ter sido jogador de futebol.

Quando era pequeno torcia por algum clube?
Como homem do norte ia ao futebol pela mão do meu pai. E ia ver o Futebol Clube do Porto. Cheguei a ser sócio do FC Porto e tinha numa prateleira em casa uma bota do Kostadinov, que apanhei numa invasão de campo, em que o FC Porto foi campeão [risos]. Era um troféu. Mas também tenho de dizer que apesar de ter estado oito anos no FC Porto, há um conjunto de coisas que se vão esbatendo quando entramos no futebol profissional. O nosso percurso e o querer ganhar, querer marcar posição são mais importantes do que o resto.

Havia algum jogador que admirasse mais, que fosse um ídolo?
Recordo-me que havia um senhor na Trofa que dizia que preferia ir ao FC Porto ver as camisolas do FC Porto a secar, do que ver outras equipas a jogar. E eu lembro-me de um dia ter ido assistir a um treino do FC Porto, no tempo do Yuran e Kulkov, e de ver os dois russos a sair nos seus carros. É a imagem que tenho mais marcada e mais forte dessa altura. Mas curiosamente lembro-me antes disso, do Madjer e daquela equipa que foi campeã da Europa. O Madjer foi uma grande referência, como o Fernando Gomes.

Só praticou futebol?
Joguei voleibol num clube da Trofa, três, quatro anos. Depois joguei polo aquático no tempo da faculdade, federado também. Fomos campeões da II divisão. Era uma equipa universitária e jogamos no campeonato nacional no ano seguinte.

Com os pais na praia

Com os pais na praia

D.R.

Quando começou a pensar no que queria fazer profissionalmente?
Sempre me senti altamente confortável no mundo do desporto, identificava-me muito com isso, até por influência familiar, devido à empatia que tinha com aquilo que o meu pai ia fazendo. Lembro-me que o meu pai dava aulas de natação em Guimarães, numas piscinas que ainda hoje existem, mas que estão desmanteladas, perto do centro de treinos do Vitória, e eu era pequenino e já nadava ao comprido piscinas de 50 metros. Tinha jeito um bocadinho para tudo e não era especialista em nada. Quando tive de fazer a opção no 10.º ano, naturalmente escolhi Desporto. O momento que marca a entrada de facto no futebol é aquele em que tenho de escolher a opção na faculdade, aí tomei a clara decisão de ser no futebol.

Porquê futebol?
Porque dentro do que fui contactando transversalmente com as diferentes modalidades, era aquela onde eu sentia ter mais ligações emocionais. Não só no desfrutar daquilo que é o jogo em si, como também pela dimensão pública do jogo. Confesso que a possibilidade de fazer carreira no desporto, em algo que me pudesse levar a uma dimensão grande, seduzia-me. O futebol levar-me-ia muito mais depressa a isso do que, por exemplo, como dizem os espanhóis, o desporto para menos válidos, ou de recriação, ou noutras modalidades que não têm tanto impacto público. Efetivamente, o futebol reunia um conjunto de coisas que me motivaram.

Houve outras pessoas que influenciaram essa escolha, além da família?
O contacto com o professor Vítor Frade, por exemplo. Foi meu professor durante dois anos na faculdade e a forma dele ver o fenómeno do futebol, o jogo e o processo de treino, teve uma influência muito grande, foi aí que começou a nascer o fascínio pela reflexão à volta do futebol. Foi um influencer, como se diz agora, porque a maneira como ele propunha olhar para o fenómeno do futebol, tocou-me sobremaneira. Depois voltamos a encontrar-nos várias vezes. Houve outras pessoas que me marcaram muito, mas ele é a primeira grande marca.

Com o irmão, Luís, três anos mais novo

Com o irmão, Luís, três anos mais novo

D.R.

Quando foi treinador pela primeira vez e como é que surgiu a oportunidade?
O 2.º ano da opção, que era o 4.º ano da faculdade, era teórico-prático. Basicamente, a faculdade arranjava posições e eu escolhi o Sporting de Espinho. Fui com um colega. E é um momento engraçado, porque a primeira vez que fui treinador de futebol é através de moeda ao ar.

Como assim?
Um de nós teria de ser treinador e o outro adjunto, pelo menos no papel. Íamos os dois no comboio e decidimos de moeda ao ar. "Quem é que vai ser?"; "Sei lá, vamos atirar moeda ao ar". Calhou-me a mim, no papel, ser o treinador do Sporting Clube de Espinho infantis.

Quando e como foi essa primeira experiência?
Foi em 1993. Curiosamente, essa minha experiência com futebol de 11 numa idade tão precoce levou-me a, no ano seguinte, fazer a minha tese de licenciatura precisamente com o tema "Futebol de 7 versus futebol de 11, especificidade precoce, contributo para uma não especialização precoce". O facto de ter contactado com a realidade de miúdos tão novos jogarem num campo tão grande, fez-me questionar. Na tese, tentei mostrar que quer sob o ponto de vista das ações motoras, quer sob o ponto de vista fisiológico, o futebol de 11 não era o que mais se adaptava ao escalão etário de escolinhas. Esse estudo foi divulgado ao nível das associações distritais e sei que foi um documento que permitiu consubstanciar teoricamente a decisão de mais tarde se adotar o futebol de 7 nestes escalões. Porque já era assim em Espanha e noutros países.

Essa primeira experiência como treinador foi mais difícil ou mais fácil do que esperava?
Foi muito gira, porque é aquele fascínio da primeira vez que temos a responsabilidade de ter um grupo de meninos à nossa frente. Na altura, o Norton de Matos era o treinador da equipa principal do Sporting de Espinho e tivemos oportunidade de contactar com ele também. O professor José Guilherme, que hoje está na federação e era assistente na faculdade, era nosso treinador técnico, o que também foi muito positivo porque era uma ligação ao professor Vítor Frade. No fundo, foi a ilusão de fazer um percurso académico e chegar ao momento em que efetivamente sou eu que sou responsável por estar à frente desta gente. É o começar a tomar decisões, a pensar nos treinos, no que fazer, no que era ou não importante, trazer a teoria daquilo que íamos ouvindo, falando e pensando, para a prática, e foi fabuloso.

Com o irmão e o pai

Com o irmão e o pai

D.R.

Após concluir o curso, que perspetivas tinha?
O 5.º ano da faculdade é o ano de estágio e fui para a Escola Secundária da Trofa dar aulas. Comecei no mundo profissional, a ganhar os meus primeiros salários e a concluir a minha licenciatura. Faço o estágio e, no ano seguinte, continuei a dar aulas, mas tive de ir quatro meses à tropa. Estive em Vendas Novas a fazer a recruta e depois vim para o Porto, para a escola prática de transmissões chefiar a secção de Educação Física militar.

Gostou do serviço militar?
Adorei. Eu gosto da disciplina, gosto da organização, gosto do rigor, identifiquei-me bastante com esses valores no serviço militar. Por outro lado, como não tinha dificuldades naquilo que era o esforço físico, desfrutei bastante. Lembro-me de estar como oficial de dia num domingo e chegar a Polícia do Exército com dois presos para eu meter na cadeia do quartel [risos]. Eu sabia lá o que tinha de fazer [risos]. Mas foi uma ótima experiência, com uma camaradagem gira, e que me permitiu fazer uma coisa que tem a ver com o meu avô. O meu avô sempre disse que gostava que um neto fosse à tropa. Tive um tio que esteve em África, mas nenhum neto tinha feito a tropa até então. Fiz a minha formatura, no final da recruta, com o meu meu avô e os meus pais a assistir. Foi um orgulho e uma alegria dar essa satisfação à família.

Já namorava?
No 4.º ano da faculdade comecei a namorar a Raquel, colega de curso, que ainda hoje é minha esposa.

Como treinador do escalão de Infantis, em 1993/94, no Sporting de Espinho

Como treinador do escalão de Infantis, em 1993/94, no Sporting de Espinho

D.R.

Como entrou na formação do FC Porto?
Após a tropa dei aulas durante dois anos em Famalicão e depois vim para uma terra encostada à Trofa, Ribeirão, onde estive durante vários anos enquanto trabalhava também na formação do FC Porto. Mas a minha ida para o FC Porto é uma história fabulosa que eu gosto muito de contar. Passava um fim de semana em casa da Raquel, numa aldeia de Braga, e recebi um telefonema do Pedro Sá, que foi meu colega na Secundária da Trofa. "Miguel, recebi um convite para ser coordenador da formação do Trofense e aceitei hoje. Entretanto, ligou-me o professor Zé Maria (na altura sub coordenador da formação do FC Porto) a dizer que há uma vaga nas escolinhas do FC Porto, e perguntou-me se eu quero ir à entrevista amanhã, mas eu não posso porque acabei de comprometer-me com o Trofense. Tu queres ir a essa entrevista?". Claro que queria.

Pelos vistos, a entrevista correu-lhe bem.
Quando cheguei à reunião, quem lá estava era o professor Ilídio Vale, o coordenador da formação. Quando abri a porta e ele disse-me: "Ai és tu! Senta-te lá aqui para conversarmos um bocado", percebi naquele momento que seria treinador do FC Porto.

Porquê o "Ai és tu!"?
Porque uma das pessoas que entrevistei para a minha tese de licenciatura foi o professor Ilídio Vale. Já tínhamos travado conhecimento e partilhado algumas conversas de futebol no ano anterior. Estamos a falar de uma pessoa que é o meu grande amigo no futebol, a pessoa com quem eu tenho mais ligações viscerais, digamos assim.

Ficou a trabalhar com ele?
Trabalhei nesse ano com o senhor Freitas, que tinha sido o lateral direito do FC Porto, alguns anos atrás, era um senhor já com alguma idade e com um jeito brutal para as crianças, mas com necessidade de ajuda na parte mais técnica. Eu era adjunto das escolinhas.

Mudou-se para o Porto nessa altura?
Não, continuei na Trofa porque eu dava aulas. Todo o meu percurso no FC Porto é não profissional, ou seja, não exclusivamente no futebol. Eu continuei a ser professor, até mudei para uma nova função, tive uma experiência de cinco anos como gestor de uma escola, fui vice-presidente do conselho executivo da EB2/3 de Ribeirão, de Famalicão. Uma experiência fantástica.

Domingos Paciência, Bandeirinha, Ilídio Vale e Miguel Cardoso

Domingos Paciência, Bandeirinha, Ilídio Vale e Miguel Cardoso

D.R.

Como se dá o seu percurso do FC Porto até chegar à equipa B?
No final dessa época de escolinhas, o professor Ilídio Vale decidiu que todos os treinadores teriam de ter um professor de Educação Física como adjunto, independentemente da formação do treinador principal. Curiosamente, o senhor Costa Soares, que estava nos juvenis e que era um catedrático do futebol, campeoníssimo em todos os escalões, disse: "Eu quero o Miguelzinho", como ele me chamava. E passei das escolinhas para os juvenis, que treinavam no estádio das Antas. Ou seja, no meu segundo ano no FC Porto eu estava no meio das trutas, a cruzar-me com toda a gente importante do FC Porto e num patamar para lutar para ser campeão nacional. O senhor Costa Soares fez um jogo, e no primeiro jogo do campeonato teve um problema cardíaco e não pode mais ser treinador.

Quem o substituiu?
O professor Ilídio Vale. Fui adjunto do coordenador técnico da formação do FC Porto, o que me marcou brutalmente pelas experiências de crescimento profissional e pessoal. Naquele ano fomos campeões nacionais de juvenis. No Ilídio vi dedicação incondicional, ele foi um role model na forma obstinada como trabalhava, na reflexão permanente, na análise que às vezes até se tornava dura para todos nós, mas fascinante. Lembro-me que acabávamos os treinos e ficávamos horas a conversar no parque de estacionamento. Paralelamente, comecei a fazer o mestrado em desporto de crianças e jovens, o que me permitiu um reconhecimento profissional grande no clube, porque mostrou um investimento muito forte da minha parte naquilo que era o meu percurso. Costumo dizer que entrei para o FC Porto por acaso, mas não foi por acaso que consegui chegar num período curto ao mais alto da formação do FC Porto, porque depois cheguei à equipa B. E também é uma história gira.

Silvino, Vítor Frade e Miguel Cardoso

Silvino, Vítor Frade e Miguel Cardoso

D.R.

Conte.
No final desse ano, o Ilídio disse-me: "Miguel, eu vou deixar de treinar. O que queres fazer dentro do clube para o ano? Se quiseres podes ser treinador principal das escolinhas ou ser adjunto de escalões mais acima". Uma das pessoas que ia começar a treinar era o Bandeirinha. E eu disse: "É com o Bandeirinha que quero trabalhar".

Porquê com ele?
Porque o Bandeirinha ia começar a treinar os iniciados e provavelmente era aquele que mais ajuda iria precisar, o que me daria um espaço grande junto dele. E assim aconteceu, o Bandeirinha é uma pessoa excecional, com um caráter fabuloso, é um ser humano lindo e permitiu-me precisamente esse espaço. Ajudámo-nos mutuamente de forma frontal, clara, pura e sem qualquer tipo de constrangimento na relação, porque ele precisava de ajuda e eu queria crescer. No ano seguinte, o FC Porto criou a equipa B, pela primeira vez. E as equipas B's entraram a jogar na III Divisão. Quem ia ser o treinador do FC Porto B era o professor Ilídio Vale. Quem fez equipa técnica com o professor Ilídio Vale? O Bandeirinha e Miguel Cardoso. Foi assim que em quatro anos cheguei ao segundo escalão mais elevado da formação no clube. Por coincidências e por valia.

Esteve quanto tempo com eles?
Nesse ano, o Ilídio a determinada altura passou para adjunto do Fernando Santos e quem terminou a época foi o Bandeirinha e eu, sozinhos. Ao mesmo tempo, fui fazendo a minha formação de treinadores. Fiz o curso UEFA A, Nível 3, em 1999. No ano seguinte, o Ilídio foi novamente treinador da B. Mas aí conheci uma pessoa que foi muito importante para mim: o Domingos Paciência. O Domingos tinha vindo do Tenerife, ia para o Sporting e o FC Porto desencaminhou-o a meio do caminho. Ele ainda tinha anos de contrato como jogador, mas passou a treinador-adjunto da equipa B. Era Ilídio, Bandeirinha, Domingos e Miguel Cardoso. Mais tarde, o Domingos quis montar uma academia de futebol no Porto, com o Rui Barros, e pediram-me para ser o rosto técnico dessa academia, que funcionou durante muitos anos. Eu era o coordenador técnico.

Encontro com o irmão quando este trabalhava no Boavista e Miguel no SC Braga.

Encontro com o irmão quando este trabalhava no Boavista e Miguel no SC Braga.

D.R.

No FC Porto, não chegou a ser treinador principal dos sub-15 também?
Sim, há um momento na equipa B em que o professor Ilídio se vira para mim e diz: "Miguel, está na altura de fazeres o teu caminho de treinador. Esquece lá o preparador físico, esquece a equipa B, vais começar a crescer na estrutura do clube como treinador, porque quero que chegues aos escalões mais acima". Fui para os sub-15 que trabalhavam nas instalações e jogavam com a camisola do Padroense. Conseguimos ir à segunda fase do campeonato nacional de juvenis, com os meninos do 1.º ano. Foi uma época que permitiu-me aplicar tudo aquilo que nos anos anteriores tinha vivido em funções diferentes. Por isso, acho que tive uma formação muito rica, como treinador, porque passei por preparador físico, passei por adjunto, e quando cheguei ao momento de ser treinador, consegui olhar para aquilo que é o trabalho de uma equipa técnica de uma forma ampla, absorvente.

Não o assustou assumir a liderança de uma equipa, ainda que de sub-15?
Por um lado, custou-me porque eu estava num patamar em que tinha um contacto diário com José Mourinho, por exemplo. Estávamos no centro de treinos do Olival, entrar naquele espaço de eleição, era estar próximo dos melhores foi fantástico. O Zé permitia um contacto próximo, o Rui Faria era um amigo. Nessa altura dei muitos cursos de treinador de primeiro e segundo nível em Braga, no Porto, em Viana, nas associações distritais e passou pelas minhas mãos muita gente que mais tarde chegou ao alto nível. Sair daquele espaço custou-me. Agora, o assumir a liderança da equipa não custou porque estava mais que preparado. Senti-me muito confortável e muito contente. Essa confiança por parte do Ilídio foi decisiva para que eu visse aquilo como um momento importante e um percurso a ser feito. Quando acabou essa época surgiu o convite do Carlos Carvalhal para ir para o Belenenses.

Já tinha sido pai?
Sim, o Bernardo nasceu em 2002, quando estou no FC Porto.

Com Carlos Carvalhal (à esquerda) que levou Miguel para a equipa técnica do SC Braga

Com Carlos Carvalhal (à esquerda) que levou Miguel para a equipa técnica do SC Braga

D.R.

A ida para o Belenenses obriga-o a sair de casa e ir viver para Lisboa. Foi sozinho ou com a família?
Ao longo do meu percurso profissional a Raquel sempre foi fantástica no que toca às decisões profissionais. Sempre foi impulsionadora das minhas decisões, mesmo com prejuízo dela própria, porque durante muitos anos teve de assumir muito a educação do Bernardo. A Raquel e o Bernardo nunca viveram comigo em lado nenhum do estrangeiro, nem em Portugal. Só quando estive em Braga é que estiveram comigo. Isto pela noção clara de que o futebol é um mundo muito volátil e a minha mulher não estava disposta a perder aquilo que era a vida profissional. E queríamos que o nicho de crescimento do nosso filho fosse aqui. Procuramos minorar o mais possível o afastamento, viajar sempre que pudéssemos, num sentido e noutro, e partilhar o mais possível o tempo que temos.

Foi surpreendido pelo convite de Carlos Carvalhal?
Fiquei surpreendido e muito contente porque o Carlos deu logo uma entrevista em que disse: “Eu levo para o Belenenses o melhor preparador físico de Portugal”. O Carlos estava cheio de energia, vinha do Leixões e, de repente, estava no patamar de I Liga, a lidar com jogadores já consagrados. Conheci um Belenenses lindíssimo, onde se sentia uma cultura própria. Era o “velho” Belenenses, com o presidente Sequeira Nunes, as figuras da cultura ligadas ao Belenenses, o João Pedro Pais, o António Melo, o Ferrão, gente que gostava do Belenenses.

Gostou de trabalhar com Carvalhal?
Muito, o Carlos tinha claramente uma ideia daquilo que queria.

Numa viagem do SC Braga, à conversa com Jorge Costa no avião

Numa viagem do SC Braga, à conversa com Jorge Costa no avião

D.R.

Quais os jogadores que mais recorda desses dois anos no Belenenses?
Nessa altura começou a aparecer o Rúben Amorim. Recordo-me que ele estava com inícios de pubalgia e ficava comigo nos finais de treino a fazer trabalho individual para equilibrar. O Gonçalo Brandão também apareceu na altura. Tínhamos o Sousa, o Tuck, o Neca, o Anderson que tinha vindo do Benfica, o Rodolfo Lima, o Cristiano, o Lourenço que veio do Sporting, o Rui Ferreira, o Gaspar, Pele, o central, o Marco Paulo, era um plantel já com alguns pesos, ainda apanhei o Wilson, o central.

Gostou de viver em Lisboa?
Eu adoro o Porto, vivi no Porto e continuo a adorar o Porto, mas também gosto muito de Lisboa nas coisas que tem de antítese comparativamente com o Porto.

Como por exemplo?
O anonimato. O facto de a cidade ser tão grande, tu tornas-te anónimo. Devido à internacionalização que Lisboa já tinha, e que há 18 anos o Porto ainda não tinha. Íamos a Lisboa e sentíamos uma cidade cosmopolita, não se sentia isso no Porto, era uma cidade mais fechada. Hoje já não é assim, mas quando fui para o Belenenses esta era a grande diferença. O Porto teve um crescimento brutal nos últimos 10 anos, tornou-se uma cidade internacional. Por outro lado, em Lisboa tinha o fascínio de ter a praia e a montanha perto e o futebol permitia-me fugir dos circuitos do tráfego e desfrutar dos espaços nos momentos e no tempo de forma diferente dos horários das outras atividades.

Quais foram os momentos mais marcantes nas duas épocas no Restelo?
Sem dúvida, as pessoas do clube. Gosto muito de nadar e passava horas a nadar na piscina do Belenenses. Aliás, o Carvalhal apareceu-me lá de surpresa, porque eu acabava os treinos, dizia-lhe que ia nadar e ele um dia foi lá ver se era verdade, não acreditava. O contacto com as modalidades amadoras do clube, o ir ver os jogos de basquetebol no pavilhão que havia ao lado.

Num treino do SC Braga

Num treino do SC Braga

D.R.

Não concluíram a segunda época. Foi a primeira chicotada que sofreu. Foi duro?
É a sensação de que no futebol há um conjunto de fatores que influenciam muito aquilo que te acontece, mas tu controlas apenas uma parte. Basicamente, essa é a grande aprendizagem e, ao mesmo tempo, a sensação clara de que temos de ser muito fortes nessa parte que controlamos para nunca deixar que as outras sejam mais fortes. De uma época para a outra houve mudança de presidência. Sei que foi uma época que começou com muita ilusão porque se fizeram algumas contratações importantes. Beneficiamos muito da presença do Rui Casaca, que era o diretor-desportivo, dava-nos um enquadramento familiar e pessoal muito bom, mas não consigo precisar depois muito bem o que aconteceu. São coisas que provavelmente tiveram a ver com o Carlos e com os resultados. No futebol tem sempre no ponto final e no ponto de partida os pontos. Embora já me tenha acontecido sair de um clube e não ter nada a ver só com resultados, mas com outras coisas.

Seguiu com Carvalhal para o SC Braga. Sentiu estar a ir para outro patamar?
Senti, falamos de uma estrutura com um nível diferente, mas acima de tudo, sentia-se a ambição de ser maior e isso é o presidente. A grande marca que tenho da chegada a Braga é a vontade de crescer, a vontade de chegar ao topo, que marca aquilo que é o percurso de António Salvador.

À conversa com Domingos Paciência de quem foi adjunto durante seis anos

À conversa com Domingos Paciência de quem foi adjunto durante seis anos

Amândia Queirós

Entretanto, Carlos Carvalhal foi para o Beira-Mar, mas não o acompanhou. O que aconteceu?
O que o Carlos me disse, naquele momento, foi que o Beira-Mar tinha um preparador físico da casa, com muitos anos de clube e que não era possível incluir-me. No futebol, às vezes não conseguimos fazer as equipas técnicas que queremos. Eu também tinha um salário bom no SC Braga, que não era possível no Beira-Mar; o equilíbrio das coisas era importante e o que combinámos foi deixar a época chegar ao fim e depois, eventualmente, cruzámo-nos novamente.

Ficou no SC Braga onde estiveram Rogério Gonçalves e Jorge Costa. Como foi trabalhar com os dois?
No tempo do Rogério estive fora da equipa principal, estive na formação. Basicamente, o que fiz foi um documento de análise estrutural daquilo que era a formação do SC Braga naquele momento.

Regressou à equipa técnica já com Jorge Costa no comando da equipa. Foi ele que o chamou?
Entraram no SC Braga duas pessoas que foram muito importantes no meu regresso à equipa principal, o Eládio Paramés e o Jorge Costa. O Eládio tinha ligações ao José Mourinho e naturalmente houve alguma empatia comigo, fruto das informações que tinha do que eu era no FC Porto, do contacto com o Zé e o Rui Faria. Na mudança do Rogério para o Jorge Costa, e porque o Jorge conhecia-me do FC Porto, fui novamente chamado para a equipa técnica. Lembro-me do primeiro jogo em Parma, já com o Jorge, em que ganhámos 1-0, com um golo do Diego Costa, que era um menino de 19 anos. Jogava o Fernando Couto no Parma.

Luís Gonçalves, Miguel Cardoso e Ilídio Vale

Luís Gonçalves, Miguel Cardoso e Ilídio Vale

D.R.

Gostou de trabalhar com o Jorge Costa?
Gostei porque o Jorge é um ser humano espetacular. Aquilo que ele era como treinador, o Jorge estava a começar, nem sequer é importante falar sobre isso. Eu gostei porque ele é um ser humano espetacular e as boas pessoas só nos acrescentam. Não mantemos muito contacto, mas abraçamos-nos de forma muito clara quando estamos juntos. Temos uma relação de respeito e admiração mútua.

Quando terminou essa época não ficou em Braga. Porquê?
Porque eu já tinha uma ligação muito forte ao Domingos Paciência, já havia uma vontade grande de trabalharmos juntos. O convite do Domingos era quase tácito, nós sempre dissemos que um dia havíamos de trabalhar juntos. Pudemos consumar essa ligação, que não foi logo no início de época, porque quem começou a época em Coimbra foi o Manuel Machado; e permitiu-me fazer um outro passo, porque eu tinha dito ao Domingos que quando trabalhasse com ele queria ser adjunto. É a primeira vez que saio das funções de preparador físico para as de adjunto no futebol profissional. Obviamente que eu acumulava um conjunto de tarefas, mas naquele momento começou efetivamente a minha transformação de funções.

Já ambicionava ser treinador principal?
Não. Naquele momento sentia-me muito feliz. Mas tinha necessidade de passar mais para a esfera técnica. Ou seja, eu sentia que já auxiliava os treinadores na parte técnica ao ponto de achar que esse reconhecimento deveria ser real. Fazia sentido estar mais perto do treinador no pensamento das questões do jogo. Até porque não pensava o treino de uma forma desintegrada, mas sistémica e, portanto, essa questão da preparação física não fazia sentido. Quando eu pensava o treino de uma maneira e chamavam-me preparador físico, era quase como me chamar um nome que não era o meu. Esse foi o acordo que fiz com o Domingos.

Miguel sentado no banco do Sporting e com Carlos Freitas e Domingos Paciência ao lado, de pé

Miguel sentado no banco do Sporting e com Carlos Freitas e Domingos Paciência ao lado, de pé

Antonio Azevedo

Quem eram os treinadores que admirava mais na altura?
Naquele momento o José Mourinho disparou. Quando eu estava no FC Porto, a primeira vez que o vi, estávamos no balneário da equipa B e ele veio ao nosso balneário cumprimentar as pessoas todas. Nunca me esqueci. Aquele homem tinha uma luz, para todos. O contacto, a forma cordial… Recordo-me de uma vez estar num restaurante a jantar com a minha mulher, pós-jogo do FC Porto em casa, ele entrou, era o dia de aniversário dele e veio ter à nossa mesa para cumprimentar-nos. Esta deferência, a realidade do dia a dia, as conversas, o contacto, foi a grande marca como treinador. Mas é no processo com o Domingos que começo a perceber aquilo que é o crescimento da própria ideia do que é o jogo e o jogar. Foi muito a partir dali.

Trabalhou seis anos com o Domingos. Quais foram os momentos altos?
A segunda época de Académica de Coimbra foi brutal, é a melhor época da Académica desde que se tornou Organismo Autónomo de Futebol; mas não há como não falar daqueles dois anos de SC Braga. Com duas carreiras distintas. Num ano muito mais virado para o campeonato, que nos permitiu estar na última jornada a discutir o título de campeões nacionais. Penso que são as épocas que o SC Braga quer repetir, por mais que tenha ganhado os troféus que ganhou entretanto. Nunca esteve tão perto daquilo que é o sonho do seu presidente como naqueles dois anos. Num ano pôde ser campeão e no seguinte disputamos uma final europeia com um percurso incrível. Começámos na Liga dos Campeões com duas pré-eliminatórias.

Como se sentiu na estreia da Liga dos Campeões?
O momento do hino marca, de facto, toda a gente. Mas a mim o que me marca mais é toda a envolvência ao jogo. Eu participei sempre nas reuniões da UEFA, nas reuniões pré-jogo, em todos os jogos. Tudo aquilo que envolve um jogo de Champions não tem nada a ver com outro tipo de jogos e de competições. A reunião de preparação dos jogos, o lidar com os árbitros no pré-jogo, estar em reuniões com eles, o fazer o treino de véspera no estádio do adversário, entrar e jogar nos grandes estádios do mundo, ir a Sevilha, ao Celtic, ir ao Shakthar da Ucrânia, ao Arsenal, jogar em Belgrado com o Partizan, e de repente eliminar o Lech Poznan e ir a Liverpool empatar com o estádio em silêncio nos últimos 10 minutos e quando o árbitro apita no final, as palmas a nós. Ir a Kiev jogar e ver o Schevchenko a jogar; depois o jogo em Braga, nós completamente adaptados, com o Paulo César a lateral direito e aos 5 minutos é expulso, ficamos a jogar com 10 e o Dínamo de Kiev no final do jogo a perceber que não conseguia marcar um golo e praticamente andar a passar a bola. Apanhámos o Benfica. Aquele célebre jogo em casa com o golo do Custódio. Foi uma rivalidade muito grande que se estabeleceu com o Benfica durante aqueles dois anos. E o atingir a final da Liga Europa. Tudo isto é inesquecível.

Com a mulher, Raquel, e o filho, Bernardo

Com a mulher, Raquel, e o filho, Bernardo

D.R.

Depois veio a experiência no Sporting, em 2011/12. De onde veio o convite, tem noção?
Nós vamos para o Sporting com muita ilusão e com uma ligação muito forte ao Carlos Freitas. O Carlos é um grande amigo ainda hoje, é uma pessoa que tinha estado em Braga com a qual fiz amizade. Quando vamos para o Sporting há uma ilusão muito grande porque é o Carlos que nos quer, que nos conhece. Obviamente, sabemos que o Sporting naquele momento é um clube muito instável em termos de treinadores, de qualquer forma tínhamos ilusão, também fruto de duas épocas de trabalho espetaculares. Ilusão num plantel que estava a ser construído e que tinha muita valia. Agora, era tudo muito verde, tudo a começar, tudo muito insípido, havia que deixar as coisas maturar. Mas gostei muito do clube, da Academia, de viver aquele contexto. Mas tenho uma mágoa muito grande com o Sporting.

A que mágoa se refere?
Tive oportunidade de dizer ao presidente que nunca na vida lhe perdoaria. Nós fomos despedidos já apurados para a final da Taça de Portugal. Fazemos uma Liga Europa muito boa. Ao terceiro jogo já estávamos apurados na fase de grupos da Liga Europa. Na Taça estávamos na final e nesse dia prometi à minha família toda que alugava um autocarro para eles irem ver a final da Taça de Portugal. Isto foi um jogo na quarta-feira no Nacional, depois jogamos domingo ou segunda-feira no Marítimo, perdemos e fomos despedidos.

Foi um balde de água muito fria?
Esse despedimento ficou-nos atravessado porque sentíamos que o trabalho seguia o seu caminho. Houve coisas que não domino, não controlo, e se conheço não quero falar sobre elas. Mas a instabilidade do Sporting tomou mais força do que aquilo que acontecia. Julgo que foi um despedimento precoce, daquilo que podia ser a afirmação a dois anos de um projeto diferente, onde o Sporting, para todos os efeitos, ia disputar uma final da Taça, estava a fazer caminho na Liga Europa e muito a tempo de fazer coisas no campeonato. Recordo que esse campeonato foi muito complicado, houve até um jogo em Aveiro que foi boicotado pelos árbitros.

Dos anos passados nestes últimos clubes de que falámos, quais foram os jogadores que mais o surpreenderam?
Jogadores claramente acima da média: Hugo Viana, que era capaz de pôr pausa no jogo de uma maneira incrível e, ao mesmo tempo, variar jogo, com umas características muito particulares; o Hugo Leal; João Pinto, que mesmo já na fase terminal da carreira tinha uma dimensão extra como jogador. Há um jogador de que gostei muito pelo carácter dentro de campo, apesar de nunca ter chegado aonde podia ter chegado, o Vandinho. Do Sporting, lembro-me do talento do Capel, do Izmailov, do Schaars; o Jeffrén tinha qualidades espetaculares, mas veio com problemas musculares. E depois havia um conjunto de miúdos a aparecer que se notava que iam ser talentos, como o João Mário, o João Teixeira, o Rúben Semedo, o André Martins, entre outros. Fica a mágoa dessa equipa não poder trabalhar um pouco mais em conjunto.