Perfil

A casa às costas

“Cresci num bairro social, cheguei a acordar com rusgas. Fui pai com 17 anos, jogava e trabalhava numa pizzaria. Quase desisti do futebol”

Fernando Varela, de 34 anos, começou a jogar com sete anos na Associação Familiar e Desportiva da Torre para fugir de maus caminhos e perseguir o sonho de ser jogador de futebol. Foi pai cedo, sem o querer, e o sonho futebolístico esteve por um fio. Teve ordenados em atraso, altos e baixos no seu comportamento, fez noitadas por não conseguir recusar convites, chegou à I Liga sem estar preparado fisicamente, mas acabou por dar a volta à carreira e à vida, no estrangeiro

Alexandra Simões de Abreu

Ana Baiao

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Nasceu em Cascais. Filho de quem?
A minha mãe chama-se Maria dos Santos Varela, o meu pai José António Lopes Varela, são imigrantes vindos de Cabo Verde, se não me engano há 40 ou 50 anos. Vieram viver para o bairro da Torre, perto da Costa da Guia. Era um bairro social muito precário, havia muita pobreza, muita droga, muitas coisas más, mas tive uma infância muito boa, muito feliz.

Os seus pais trabalhavam no quê?
A minha mãe trabalhava nas limpezas do Cascais Shopping e o meu pai era, e ainda é, pedreiro.

Tem irmãos?
Duas irmãs do lado da minha mãe, mais velhas, cinco do mesmo pai e mãe, em que eu sou o segundo, e uma irmã de parte de pai.

Qual é a sua primeira memória de infância?
Uma coisa que me lembro bem é que não havia portas para entrar em casa [risos]. Qualquer pessoa podia entrar na tua casa, mas não entravam desconhecidos porque as pessoas desconhecidas não vão para bairros sociais. No bairro eram todos conhecidos e davam-se bem, as pessoas podiam entrar em qualquer casa, havia muito companheirismo, muita solidariedade entre nós. Esse é um marco que guardo, que podia entrar em qualquer casa sem nenhum problema e era tratado como se fosse da família.

O que dizia querer ser quando fosse grande?
Sempre me disseram que eu queria ser jogador, andava sempre com uma bola debaixo do braço.

Torcia por que clube e quem eram os seus ídolos?
Em pequeno torcia pelo Benfica e os meus ídolos eram o Isaías no Benfica, o João Pinto quando jogava no Benfica.

Da escola, gostava?
Gostava de ir, gostava dos recreios para jogar à bola com os colegas, gostava de estar com os amigos e falar sobre o fim de semana, de tudo o que não tivessem a ver com a escola. Não gostava nada das aulas, para ser sincero, mas gostava muito de ir à escola porque tinha muitos amigos.

Fernando à direita de amarelo, numa atividade de escalada quando criança

Fernando à direita de amarelo, numa atividade de escalada quando criança

D.R.

Quando falou no bairro social onde cresceu, nomeou logo os problemas da pobreza e da droga. Há algum episódio que o tenha marcado mais?
Tenho memória de um caso. Havia muitas pessoas a vender drogas, traficantes, às vezes havia rusgas lá no bairro. Quando se faz rusga não se pergunta onde se vai entrar. Eles primeiro até iam à casa das pessoas que não tinham problemas, das pessoas que iam sair para o trabalho. A minha mãe saía muito cedo, às cinco da manhã, e uma vez ela ia a sair, eles mandaram-na entrar para dentro de casa, disseram para não fazer barulho, e entraram com ela. Lembro-me de acordar com os policiais lá, com pistolas e caçadeiras, a pedir para não fazermos barulho. Essa foi uma imagem que me ficou. Tinha uns sete ou oito anos. Foi uma imagem muito chocante.

Teve amigos que se meteram na droga?
Sim.

Alguma vez o tentaram?
Não, porque sempre estive muito ligado ao futebol, sempre foi o meu escape, a minha motivação, eu via que quem jogava futebol não podia ter esses andamentos. E tive a sorte de ter familiares, primos, amigos, que nunca me deixaram ir por maus caminhos. Por exemplo, eles iam para discotecas, iam sair e eu, sendo o mais novo do grupo, tentava ir com eles, mas nunca me deixavam ir. Mesmo as festas dentro do bairro, eles arranjavam maneira de eu não entrar, ficavam na porta, diziam que eu não podia entrar, que tinha de ir para casa porque tinha jogo no dia seguinte e sempre me protegeram, foi muito bom.

Quando e como foi jogar pela primeira vez para um clube?
Antigamente, para ir para o campo de futebol da Associação Desportiva e Familiar da Torre tinha-se que passar por dentro do bairro e a pessoa que estava a conduzir o futebol da Torre, passava sempre por ali e via-nos a jogar na rua. Um dia perguntou: "Não querem jogar mais a sério, federados, com equipamentos e contra outras equipas?". Como não tínhamos nada que fazer e gostávamos de jogar à bola, começámos a treinar lá.

Em casa nunca o impediram?
Pelo contrário, para a minha mãe que não tinha tempo para estar a tomar conta de mim, assim sabia onde eu estava, sabia que estava protegido e seguro.

Em 1º plano, na praia com amigos

Em 1º plano, na praia com amigos

D.R.

Jogou na Associação da Torre dos sete aos 16 anos. Como foi parar ao Estoril Praia depois?
É uma história engraçada até lá chegar, porque eu estava na Torre e já não tinha expetativas de continuar a jogar à bola porque tinha 16 anos, jogava como amador, num campeonato amador onde ninguém nos vê. Aos 16 anos já vês pessoas a terem um bocadinho de dinheiro ou a fazerem outras coisas e eu não tinha nada, só estudava e jogava à bola. Os pais quando não têm muito e veem que os filhos estão a crescer começam a dizer que já está na altura de ir trabalhar. Como não estava a ter contactos de outras equipas, comecei a pensar em desistir de ser jogador. Entretanto, um amigo meu convenceu-me a ir com ele fazer captações ao 1.º Dezembro, que disputava o Campeonato Nacional e já tinha mais visibilidade. Fui ter com o presidente da Torre, José Maçã, que gostava muito de mim e sabia que eu tinha qualidade, e disse-lhe que queria ir embora para fazer captações no 1.º Dezembro.

O que lhe respondeu?
Foi logo: "Não, não vais sair porque eu gosto muito de ti, o teu amigo até pode ir que não tem problema nenhum, mas tu vais ficar. Não vais sair daqui, contamos contigo e gostamos muito de ti". Depois comecei a criar problemas porque queria sair mesmo e ele não deixava. Até que, para eu não ficar chateado, puxaram-me para a equipa de sénior que disputava a III divisão.

Quem era o treinador?
O Paulinho, que tinha jogado no Benfica e no Estoril Praia. Disseram-me: “Sabemos que tu queres ir embora, por isso vamos pôr-te na equipa sénior, para treinar com ele e consoante aquilo que disser o Paulinho, logo vemos se vais à tua vida ou se ele acha que tens capacidades para ficar connosco". Fui treinar, o Paulinho ficou maravilhado por eu ter tanta maturidade e jogar tão simples. E foi assim que fiquei lá. Com 16 anos estava a jogar na equipa principal da Torre. Entretanto, como o Paulinho conhecia o Fernando Santos que estava nessa altura no Sporting como treinador principal, chamou-me para ir fazer captações no Sporting com os juvenis do 2.º ano. Fui lá treinar, estive seis meses à experiência. Seis meses muito difíceis.

Porquê?
Porque me levantava às oito para ir para a escola; saía mais cedo das aulas, para apanhar o autocarro, comboio e metro para Lisboa e depois seguia com eles para o treino em Alcochete. E sem saber se ia ficar ou não. Foi difícil. E pelo meio arranjei uma namorada, a Andreia, e tive um filho muito cedo, o Gustavo. Na altura eu tinha 17 anos e ela 16.

Como reagiu quando ela lhe disse que estava grávida?
Entretanto, separámo-nos porque ela pensou que eu tinha outra namorada, chateou-se e foi embora. Estive sem contacto com ela durante esses nove meses. Falávamos muito ao telefone e um dia a Andreia disse-me: "Estou grávida"; "Estás grávida?! Não estás nada grávida, queres gozar comigo". Ela ria e eu dizia-lhe que ela estava a brincar comigo.

Fernando (5º a partir da esquerda em pé) começou a jogar na Associação Familiar e Desportiva da Torre

Fernando (5º a partir da esquerda em pé) começou a jogar na Associação Familiar e Desportiva da Torre

D.R.

O que aconteceu quando o bebé nasceu?
Quando o bebé nasceu eu estava na escola, ia para a sala de aula quando veio uma amiga e disse-me: "O teu filho nasceu". Comecei a chorar. Só pensava: “Não pode ser, não é meu filho, como é possível?”. Já nem fui à aula, fui andar, andar. Estava perdido, porque os meus pais sempre nos avisaram: “Se alguém aparecer aqui com filho cedo, nós damos cabo de vocês”. Tinham essa mentalidade antiga, que não podia ter filhos com essa idade. Eu estava só com medo dos meus pais, nem tinha medo de ser pai [risos].

Nem tinha noção da responsabilidade?
Não. Tinha medo dos meus pais, que me pusessem fora de casa ou que me batessem.

Como reagiram quando souberam?
Nem fui eu que disse, foi a minha irmã, eu não tive coragem. Quando eles me abordaram eu disse que não sabia se era meu ou não, mas sempre nervoso, sempre a chorar. Nessa altura já vivíamos na Abuxarda, em Alcabideche, e um dia um primo chegou lá e disse: "Tenho carro, vamos lá ver o teu filho". Eu só respondi: "Não quero, não tenho capacidades emocionais para ver um filho nesta idade, não quero ir". Mas ele agarrou-me, pôs-me dentro do carro e fomos eu e a minha irmã. Quando chegámos a casa da Andreia, o pai dela veio abrir a porta. O pai dela teve um problema com pessoas de raça negra, que tentaram violar a minha namorada na escola; ele ficou com um bocadinho de pé atrás com os pretos. Quando ele abriu a porta e viu pretos, não ficou muito contente. Mas lá nos recebeu porque quando chegámos ela disse que éramos amigos da escola, não disse que eu era o namorado. Entrámos todos, eu fui o último, vinha atrás, cheio de medo. Os meus primos entraram, começaram a falar, agarraram no bebé.

Quando olhou para o seu filho pela primeira vez, o que sentiu?
O meu primo chegou ao pé de mim e disse: "Não queres pegar no bebé?". Quando eu agarrei nele, não só percebi logo que era o pai, como os pais dela viram que eu era o pai do bebé.

Como percebeu?
Não sei, foi no olhar. Quando eu olhei para ele vi que ele era o meu filho. A única sensação que tive foi uma sensação de aconchego, de estou a agarrar uma coisa que é minha. Eles também sentiram isso, tanto que quando eu saí, o pai dela disse-lhe: "O pai da criança é aquele que agarrou o miúdo por último” [risos].

Assumiu a paternidade? Foram viver juntos?
Fui registá-lo, comecei a dar-lhe apoio e eu e a Andreia começámos a conhecer-nos melhor. Ela na casa dos pais dela e eu na casa dos meus. Os meus pais reagiram bem e mal. Bem no aspeto que ficaram contentes por ser o primeiro neto de casa mesmo, porque a minha mãe já era avó, mas das outras filhas mais velhas dela, mas com o meu pai era o primeiro neto dos dois. Mas claro que também ficaram meio chateados porque eu era novo. O meu pai até me surpreendeu, veio ter comigo e disse: "Qualquer coisa que o bebé precise a gente está aqui para ajudar, sem problemas nenhuns". A minha mãe é que ao início ainda insistia em irmos fazer o teste de paternidade. Para a minha mãe foi difícil de aceitar, porque eu era o filho mais certo, o mais correto, o que ajudava, limpava a casa, aspirava, limpava os móveis, fazia o comer para os meus irmãos e para ela foi um choque saber que podia estar a perder-me. Ainda hoje diz à minha mulher: “Tiraste-me o melhor filho dentro de casa” [risos].

Voltando à experiência no Sporting, no final dos seis meses mandaram-no embora?
No Sporting disseram que não podia ficar, que tinham vários bons centrais. Queriam mandar-me para o Nacional da Madeira, mas eu não aceitei: "Para o Nacional não quero, sou pai, tenho de acompanhar o crescimento do meu filho e não tenho ninguém na Madeira, o que é que eu com 17, 18 anos vou lá fazer sozinho?”. Entretanto, o Paulinho já tinha falado com o Martins, que era o treinador dos juniores do Estoril Praia, e fui para lá.

Estreou-se com quem?
Com o Marco Paulo. Não havia jogadores, eles estavam com salários em atraso, a passar dificuldades, por isso recorreram aos mais novos.

Fernando (1º à esquerda) com a mãe e irmãos

Fernando (1º à esquerda) com a mãe e irmãos

D.R.

É no Estoril que ganha o primeiro ordenado com o futebol?
Sim. Eu ganhava na Torre 25 euros para despesas, para ir treinar. Contrato profissional foi só no Estoril. Eram quase mil euros, dois ordenados mínimos. Eu também trabalhava nessa altura, na Telepizza. Eu e a minha esposa, a Andreia.

A escola ficou para trás?
Na altura saí no 8.º ano, mas já fiz o 12.º ano, através das Novas Oportunidades, no Sindicato dos Jogadores. Na altura senti que a minha esposa e os pais tinham dificuldades para tomar conta de uma criança e que com a minha contribuição podia ser mais fácil. Falei com os meus pais, também não aceitaram muito bem porque eram rígidos em termos de escola.

Continuavam a viver em casa dos vossos pais?
Sim, tudo separado. Eu jogava nos juniores do Estoril, acabava o treino, ia para o trabalho, depois quando acabava de trabalhar voltava para casa e depois ia para o treino outra vez. Foi sempre essa rotina durante dois ou três anos.

Recorda-se do jogo de estreia como sénior?
Eu não fiquei na equipa principal, ia jogar ocasionalmente à equipa principal. O meu jogo de estreia foi contra o Vitória de Guimarães.

Estava muito nervoso?
Sim, ia jogar com pessoas que apesar de não serem os teus ídolos, são referências porque é da equipa mais velha, tinha admiração e respeito. Ainda por cima, entrar no estádio D. Afonso Henriques, em Guimarães, com 18 mil pessoas… não foi fácil [risos]. Nessa época só fiz esse jogo.

Depois foi emprestado ao Rio Maior?
No Estoril queriam que eu fosse para o Elvas, até era o Paulinho que estava lá como treinador, mas a questão era a mesma. O meu filho. Disseram que havia hipótese do Rio Maior, então escolhi ir para lá.

Ia e vinha todos os dias?
Não, deram-nos casa. Era eu e mais três juniores que tínhamos assinado contrato profissional. Fomos os três para o Rio Maior e ficámos numa casa, cada um num quarto. Fiquei lá um ano.

No dia da entrevista à Tribuna

No dia da entrevista à Tribuna

Ana Baiao

Como foi sair de casa dos pais?
Eu, entretanto, já tinha ido para a casa dos pais da minha namorada, porque como já não precisava de trabalhar e como só não tinha treinos de manhã, eu podia ficar com o bebé. Os meus pais não aceitaram, foi uma guerra, porque na tradição dos cabo-verdianos, nunca é o homem que vai para a casa da mulher, é sempre a mulher que vai para a casa do homem e eu estava a fugir da tradição. Os mais velhos da família começaram a encher a cabeça da minha mãe. Foi um período muito mau da minha vida, com muitas discussões. Mas, por outro lado, foram momentos inesquecíveis com o meu filho. Eu ia buscá-lo a pé à creche e tínhamos muitas conversas, punha-o às cavalitas, e lá íamos nós na conversa.

Passado um ano quando regressou ao Estoril Praia o treinador era o Tulipa. Gostou dele?
Gostei. Posso dizer que os meus treinadores foram sempre autênticos pais para mim, ajudaram, mudaram a minha vida, tanto o Paulinho, como o Martins, o Tulipa, que foi crucial.

Porque diz isso?
Porque venho de Rio Maior e chego ao Estoril, ele ainda não tinha assinado e já me tinham mandado embora. Já me tinham ligado a dizer: “O plantel é muito longo, não vais ficar, vais ser emprestado novamente". Fiquei bastante triste e ponderei muitas coisas, queria desistir do futebol outra vez. Falei com o Mário Jorge e pedi-lhe para pelo menos deixarem-me fazer a pré-época. Mas que não, que não. Entretanto, o Tulipa assinou contrato e disse que queria ver todos os jogadores, mesmo os que eles iam mandar embora. Tudo mudou na minha cabeça, já fui com outro espírito. Quando cheguei, sabia que não podia facilitar e não facilitei. Acabei por ficar na equipa principal.

Na época seguinte saiu o Tulipa e veio João Carlos Pereira. Que tal?
Só fiz um jogo com ele porque o Estoril não pagava, estava com três meses de atraso e eu ia ter o segundo filho, o Tomás. Ao quarto mês sem receber já estava numa situação bastante difícil, acabei por rescindir contrato.

Fernando estreou-se com os seniores da Associação da Torre, com 16 anos

Fernando estreou-se com os seniores da Associação da Torre, com 16 anos

D.R.

Vai para o Trofense como?
O Tulipa, como sabia da situação porque tinha estado lá e tinha passado pelo mesmo, ligou-me e disse: "Podes rescindir por justa causa, quero-te muito aqui no Trofense, quero que venhas para a I Liga, acho que vai ser bom para ti". Ele pôs o Carlos Janela a tratar de todo o processo, na Federação, na Liga. Quando meti a carta foi um choque para o Estoril, não estavam à espera. Eu ainda era novo, tinha 20 ou 21 anos, estavam à espera de ter algum retorno comigo.

Foi viver para a Trofa?
Sim, fomos todos, a minha mulher e os meus dois filhos. O Tomás tinha poucos meses.

Como foi adaptar-se à vida de casado, com dois bebés e sem ajuda direta dos pais?
Foi mais difícil para ela do que para mim. Porque ela estava sempre sozinha e antes tinha a ajuda da mãe, se não era da mãe era da irmã. Ter de cozinhar, tomar conta dos filhos, fazer as lides da casa, não foi fácil. Mas crescemos muito os dois. Foi o que deu um boost à nossa relação porque foram momentos difíceis que sempre tentámos ultrapassar.

O Trofense desceu de divisão nesse ano.
Foi um ano complicado em que houve jogadores a tentar bater no treinador, a tentar bater uns nos outros. Foi um ano onde eu vi quase de tudo. Daí termos descido de divisão. Era sobretudo entre os mais velhos, os que tinham mais moral, eles é que discutiam bastante.

Tinha assinado por quanto tempo?
Quatro anos. Era um bom dinheiro.

Nos juniores do Estoril Praia. Fernando está no meio, atrás

Nos juniores do Estoril Praia. Fernando está no meio, atrás

D.R.

Na II Liga apanhou Vitor Oliveira como treinador.
Muito boa pessoa. Eu é que tive azar porque tive a minha primeira lesão grave no joelho, logo no primeiro jogo. Rompi os ligamentos, fiquei seis meses de fora. Sempre que ele me via dizia: "Estás a fazer falta, preciso de ti, recupera rápido e bem, preciso de ti". Nessa altura houve muitos jogadores com lesões e a serem operados. Quando me recuperei da lesão ele saiu e veio o Daniel Ramos. Terminei a época bastante bem e a seguir assumiu como treinador o Porfírio Amorim, que era o diretor-desportivo, e aí a época não correu nada bem ao início.

Porquê?
Começou a encostar-me, a pôr-me no banco, trouxe os jogadores dele. Surgiu uma oportunidade de eu sair para o Ceuta de Espanha, que estava na II Divisão, era o João de Deus o treinador, e eles não queriam deixar-me sair. Eu só perguntava: "Se vocês não precisam de mim porque querem que eu fique aqui?"

Tinha empresário?
Era o Carlos Janela, não era de contrato assinado, mas era ele quem tratava das minhas coisas. Acabei por ficar no banco nos primeiros meses, entretanto o central saiu para ir ao Brasil tratar de assuntos, mas acabou por ficar lá. Eles ficaram sem ninguém e comecei a jogar. Comecei a jogar bem, a partir daí nunca mais saí da equipa. Mas houve uma situação delicada entre mim, o Porfírio e o clube.

Que situação foi?
Houve um jogo em que fomos ao Feirense e nesse jogo, se ganhássemos, estaríamos perto da subida de divisão. Foi numa altura em que começaram a falar-se nas apostas, em jogadores que estavam comprados, que estavam vendidos. Eu levei um cartão vermelho em dois segundos - um amarelo e logo a seguir outro amarelo e vermelho. Na semana seguinte o Porfírio Amorim começou a acusar-me que eu tinha vendido o jogo, que estava vendido, que o Feirense também estava na luta e como o meu empresário tinha muitos jogadores no Feirense, tinha-me comprado e daí eu ter levado o cartão vermelho. Mas rapidamente viram que não havia nada e que não fazia parte do meu carácter, da minha conduta.

Nem o Feirense, nem o Janela o aliciaram?
Não, nada. Foi uma situação bem delicada, foi um dos piores momentos que vivi no futebol.

Foi afastado da equipa?
Não me afastaram porque nessa semana descobriram que não fazia sentido estarem com essa desconfiança. Descobriram logo que não tinha nada a ver uma coisa com a outra, são coisas do futebol, que acontecem.

Ana Baião

Na época seguinte foi mesmo para o Feirense. As desconfianças não voltaram?
Não sei, saí de lá e já não sei o que falaram. Na altura nem queria assinar pelo Feirense por causa disso, tinha o V. Setúbal também interessado, mas o meu empresário disse que era melhor ir para o Feirense, porque o V. Setúbal tinha problemas financeiros e o Feirense nesse aspeto não iria falhar com nada.

Nesses anos saltou muito entre a I e II Ligas. Notava muitas diferenças?
Sim. Havia jogadores com muita qualidade na I Liga, o jogo era mais rápido, mais técnico. A principal diferença para mim foi a minha condição física.

O que quer dizer?
Sentia que não estava muito preparado para jogar na I Liga, onde os jogadores eram mais rápidos, eram mais técnicos, com muita qualidade. Tens de estar bem preparado fisicamente para poderes acompanhar.

Não estava bem preparado porquê?
Sabia o que era ser profissional, mas não praticava mesmo. Estou a referir-me à alimentação, ao dormir cedo, fazer uma análise de jogo, saber onde erramos, ter melhor conduta no ginásio, treinar a 100% todos os dias. Foram coisas que em Portugal, por estar perto da família e haver sempre alguém depois do jogo a dizer “não te preocupes, jogaste bem”, para não ferir suscetibilidades, se calhar não ajuda.

E das noitadas gostava?
Também. Andei um bocadinho perdido nisso com os amigos, mesmo os do futebol, que diziam “vamos sair depois do jogo”. Em Portugal há muitos jantares de equipa e acaba sempre por haver alguém a dizer “vamos a um bar”. E tu acabas por ir. Posso assumir que era um bocadinho fraco nesse aspeto, queria sempre ir, porque ser pai tão cedo e não ter vivido a juventude como um jovem normal, se calhar puxava-me a fazer essas escapadelas.

A sua mulher ia consigo ou dava-lhe na cabeça?
Chateava-se bastante comigo, muito mesmo. Ficava muito triste, acabávamos sempre por discutir. Foi difícil perceber, mesmo às vezes querendo dizer não, acabava sempre por ir e isso também atrapalhou um bocadinho a minha vida aqui em Portugal.

Quando chegou ao final dessa época no Feirense, o que aconteceu?
A época foi produtiva para mim em termos pessoais. Fui um dos jogadores mais utilizados do campeonato. A meio da época os dirigentes de uma equipa da Roménia, o Vaslui, vieram ver um jogo, já não me recordo qual. Gostaram bastante de mim e sabendo que eu tinha um ano de contrato com o Feirense, queriam levar-me logo em janeiro. O meu empresário chegou a acordo com eles, mas para me levarem no final da época, livre. E fui. O treinador do Vaslui era o Augusto Inácio, mas só estive com ele na pré-época, ele foi logo embora.