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A casa às costas

“Nunca fui sociável. Era calado, fingia que bebia vinho para não me chatearem. Os meus colegas ouviam música, eu rezava antes do jogo”

Numa rara entrevista, Ricardo Carvalho faz uma viagem pela sua carreira, desde os primeiros anos no FC Porto, dos quais recorda a elegância de Aloísio e os ensinamentos de Jorge Costa, até à relação com Mourinho e os anos no Chelsea, onde se afirmou definitivamente como um dos melhores centrais do mundo. Esta entrevista, que agora republicamos, foi das mais lidas da Tribuna Expresso em 2021

Alexandra Simões de Abreu

Denis Balibouse

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Nasceu em Amarante. Fale-nos das suas origens. Quem era a sua família?
Nasci em Telões, uma aldeia de Amarante. Os meus avós eram agricultores, tinham terreno, o meu pai era filho único. Vivíamos numa casa com os meus avós, que trabalhavam no campo. Tenho um irmão dois anos mais velho. O meu pai era carpinteiro e a minha mãe operária fabril.

Nunca deu dores de cabeça aos seus pais quando era pequeno?
Não. Saía de manhã e chegava à noite, brincava com os meus vizinhos o tempo todo, na rua.

Gostava da escola?
Nunca fui um aluno extraordinário, mas sempre passei de ano.

Quando era pequeno o que dizia que queria ser?
Dizia que ia ser polícia porque gostava muito das motas dos polícias [risos]. Quando comecei a ir à escola, pensava que se não conseguisse vingar no futebol poderia ser professor de educação física. Mas o futebol sempre foi uma paixão.

Paixão que surge como?
Quando éramos pequenos não tínhamos estas novas tecnologias, PlayStations e essas coisas, então íamos para a rua jogar futebol. Era o dia todo a jogar.

Torcia por que clube?
Seguia muito o clube da minha terra, o Amarante FC. Os meus pais viam todos os jogos e levavam-me desde pequeno. Numa fase mais adulta gostava muito do FC Porto, porque comecei a jogar no FC Porto, que na altura tinha grandes centrais que eu admirava por ser a posição em que jogava.

Ricardo com Madjer, quando chegou aos juniores do FC Porto

Ricardo com Madjer, quando chegou aos juniores do FC Porto

D.R.

Começa a jogar num clube com que idade e como?
Recordo-me que aos 10 anos, quando vou para a escola preparatória, o campo do Amarante FC ficava ao lado da escola e fui fazer testes ao clube. Fiquei logo. A partir daí, ia à escola e no fim das aulas ia para o treino e depois os meus pais iam buscar-me.

E fica no Amarante FC até que idade?
Até aos 16 anos.

Como define a posição em campo?
Sempre fui colocado como defesa. Acho que pelas características que tinha, de altura, não sei se era destino, sei que sempre me colocaram a central, nunca me passaram para outras posições e aprendi a gostar muito de defender e de sair com bola, mas sempre como central, de trás para a frente.

Quem foram os seus primeiros ídolos?
Na minha adolescência, com 13, 14 anos, gostava muito do Aloísio e do Fernando Couto. Também gostava do Ricardo Gomes do Benfica e do Mozer. Mas se tivesse de eleger um, acho que seria o Fernando Couto, e depois o Aloísio, com quem tive o prazer de jogar, com aquela sua serenidade, que mostrava no campo.

Em casa aceitaram bem a ideia de ser jogador de futebol?
Sempre me apoiaram obviamente, mas há uma história pelo meio. Quando tinha uns 12 anos, um olheiro do Boavista mostrou muito interesse em mim mas a minha mãe achou que era muito cedo e não permitiu que fosse para o Boavista. Aos 16 anos, quando surgiu a oportunidade de ir para o FC Porto, os meus pais deixaram-me seguir o meu caminho.

Ricardo, ao centro, jogou no FC Alverca em 2000/01

Ricardo, ao centro, jogou no FC Alverca em 2000/01

D.R.

Como surge o interesse do Futebol Clube do Porto?
O mesmo olheiro continuou a acompanhar-me. O clube mais interessado até aos 15, 16 anos era o Boavista, que queria “fechar” comigo. Entretanto surge o interesse do FC Porto num jogador da minha equipa, que lá tinha ido à experiência. E quando o FC Porto o vai buscar ao Amarante FC, falaram de mim, disseram que eu era o melhor da formação e era uma pena levarem aquele jogador e não me levarem a mim. Os diretores da altura, o engenheiro Luís Gonçalves e o senhor Joaquim Pinheiro, ligaram para os meus pais. Fomos a essa reunião e o FC Porto acabou por levar o jogador que lá tinha ido fazer testes, mas acabou por “fechar” comigo também, por um ano.

Sentia mais vontade de ir para o FC Porto do que para o Boavista?
Sim, pela história do clube e pelo historial dos defesas e dos centrais, pela evolução que me poderia permitir, estava mais inclinado em ir para o FC Porto.

Esse contrato que assinou já lhe dava dinheiro a ganhar?
250 euros.

Recorda-se do que fez ao primeiro ordenado?
Tentava poupar metade [risos].

E a outra metade gastava no quê?
Como não gostava de estar sempre a pedir aos meus pais, dava para pagar algumas viagens de fim de semana para Amarante. Eu fazia o dia-a-dia no centro de formação, no lar, e portanto não tinha despesas nenhumas com comida, com nada. O clube ia fornecendo as botas, nunca fui muito ligado a marcas, o clube dava e eu usava.

Sair do conforto de casa para o lar do FC Porto com 16 anos, custou-lhe muito?
Foi muito duro, muito duro. A verdade é que mudas completamente a tua vida, sais de uma cidade e de um clube pequeno e vais para uma cidade e um clube grandes.

O que foi mais duro?
Duro é ficares sem o convívio dos teus pais e dos teus amigos. Chorei muitas vezes de saudade. Custa muito durante dois, três meses, mas depois começas a adaptar-te.

Nunca pensou em desistir, em voltar para casa?
Não. A vontade de ir para casa era bastante grande, mas sabia que tinha de passar por aquilo, era importante como atleta manter-me no FC Porto e tentar evoluir, não podia parar.

Desistiu dos estudos quando?
No 11º, tinha 17 anos. Foi numa fase em que comecei a ser chamado à seleção também, aos sub-18, e comecei a perder uma semana, duas semanas. Ainda tentei fazer a escola à noite, mas não era a mesma coisa e acabei por desistir.

Esteve dois anos na equipa de juniores. Qual a memória mais forte que tem desse tempo?
A primeira vez que chego ao FC Porto. Nunca tinha treinado num campo de relva [risos]. A adaptação ao treinar e jogar sempre na relva, que é completamente diferente, até ali só treinava e jogava em pelados, marcou-me. Para um defesa é bom, porque com a tendência de fazer carrinhos, de ir ao chão, é melhor, mas tecnicamente é bem diferente porque quando a relva está molhada, a bola bate e foge. Ao princípio foi um pouco estranho. Mas tive a sorte de ter um treinador, o Madjer, que gostou de mim.

Essa é a altura em que começam as saídas à noite, os namoros…
Era muito reservado [risos].

Não fazia as suas saídas à noite com os colegas, quando podia?
Não. A verdade é que principalmente no 1º ano, todas as folgas que tinha ia para Amarante visitar os meus pais e os meus amigos. Nessa fase de juniores não me lembro de ter saído uma única vez no Porto. Se tinha jogo no sábado, como os meus pais por norma iam ver o jogo, no final levavam-me e quando o jogo era fora, eu chegava ao Porto e apanhava um autocarro para Amarante para passar lá a folga. Tinha necessidade de ir a casa, a Amarante e descansar um dia.

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Entretanto é emprestado ao Leça. Quando lhe dizem que vai ser emprestado ficou triste?
Não, a verdade é que fui um sortudo porque quase todos os meus colegas foram emprestados a equipas de II e III Divisões e eu vou para uma equipa da I Divisão. Há momentos que são importantes na nossa vida e no meu último ano de júnior, o presidente Pinto da Costa foi ver um jogo e o feedback que me deram foi que ele tinha gostado muito de mim. Como havia vários clubes interessados, recordo-me de terem falado no Nacional e no Trofense, o presidente no final desse jogo veio falar comigo, deu-me os parabéns pelo jogo.

Tremeram-lhe as pernas por estar frente a frente com Pinto da Costa?
Foi inesperado, fui o único da minha equipa a cumprimentá-lo. Foi o diretor da equipa, o Joaquim Pinheiro, que me levou até ao presidente para ele me felicitar e dizer que estavam atentos ao meu trabalho. Não contei a ninguém, guardei para mim e aquilo deu-me uma força enorme para continuar a trabalhar. Nem aos meus pais me recordo de ter contado.

Quando passa de júnior a sénior e chega ao Leça, é o primeiro embate com a I Liga, com futebol profissional. Foi complicada a mudança?
Não pensava muito nisso, só queria jogar [risos]. Ao princípio comecei por ir para o banco com o Rodolfo Reis, depois como os resultados não correram bem ficou mais difícil para ele apostar num rapaz novo; eu vinha dos juniores do FC Porto. Entra o Vítor Manuel e no fundo é o "meu pai" do futebol porque gostou tanto de mim que começou a apostar em mim. As coisas começaram a correr bem e a evolução foi enorme com ele.

Não estava nervoso a primeira vez que fez um jogo como sénior?
Não, era muito irreverente, queria era levar a bola para a frente. Não pensava, queria desfrutar e jogar, não me passava pela cabeça que estava a jogar na I Liga, que os riscos eram enormes e que não podia errar. Sempre que podia, levava a bola para a frente e jogava como se estivesse a jogar nos juniores do FC Porto.

No ano seguinte regressa ao FC Porto, faz a pré-época com o Fernando Santos, fica no plantel, mas para ficar no banco. Não lhe provocou azia?
Era complicado porque eu queria jogar [risos]. Mas, ao mesmo tempo, sabia que tinha Jorge Costa e Aloísio, que jogavam há muito tempo juntos e eram exemplos para mim. E não era aquele sentimento de revolta por achar que merecia mais, não. Por isso mesmo, no final dessa época fui eu mesmo que disse ao presidente e ao mister Fernando Santos que precisava de jogar, não podia ficar dois anos sem jogar, já tinha ficado naquele ano.

Ricardo, segundo atrás à direita, e a equipa do FC Porto que jogou a final da Taça UEFA, em 2003

Ricardo, segundo atrás à direita, e a equipa do FC Porto que jogou a final da Taça UEFA, em 2003

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Quando entra pela primeira vez no balneário sénior do FC Porto, como foi a receção?
A primeira vez que treino com a equipa principal do FC Porto eu ainda estava nos juniores. Eu já era uma pessoa que não falava muito, introvertido, quando lá cheguei, equipei-me, sentei-me calado, fiquei a olhar para eles, à espera que o treino começasse. Quando o treino começava, aí já me libertava mais e queria treinar bem, jogar bem e mostrar-me.

Não se lembra de nada que algum jogador lhe tenha dito?
Lembro-me que o João Pinto, o lateral direito, viu-me tão calado, a olhar, que não conhecia ninguém e virou-se para mim: "Toma miúdo, lê o jornal". [risos]

Nessa primeira época treinava com Jorge Costa e Aloísio. O que aprendeu com eles?
Cada um tinha as suas características. O Jorge Costa era mais a raça que tinha. Mas, pelo meu feitio, pela minha maneira de estar, gostava muito do Aloísio, da presença dele em campo, pela elegância quando jogava. Acho que foi dos maiores centrais que passou pelo Futebol Clube do Porto.

Estava com 20 anos. Já havia namoros?
O primeiro namoro começa quando estou no Leça. Eu tinha 19 anos e ela 17. Conheci a Carina através de um colega meu de equipa do Leça, que namorava com uma amiga dela. A Carina acabou por tornar-se na minha mulher.

Entretanto vai para o V. Setúbal. Tinha outras alternativas?
Na altura fiz a pré-época no FC Porto, na equipa principal, e quando peço para sair já era tarde, estávamos no final de agosto, os plantéis estavam feitos e só havia o V. Setúbal com necessidade de contratar um central. Aproveitei a oportunidade.

Vai sozinho para Setúbal?
Fui sozinho, mas no Porto já vivia num apartamento desde que passei a sénior. Havia restaurantes perto e por vezes ia buscar fora. Tinha uma pessoa que ia lá limpar. De vez em quando eu e a minha namorada fazíamos o jantar, aquelas coisas mais básicas, massas, arroz, coisas simples.

Entra com Carlos Cardoso, depois chega Rui Águas. Dois estilos completamente diferentes?
Sim, o Carlos Cardoso era da velha escola [risos].

O que é isso da velha escola?
Era mais físico, mais corrida, mais esse género. Com o Rui Águas era mais moderno, com mais bola, com joguinhos que toda a gente gosta mais. Mas tanto com um como com o outro joguei e cresci como jogador.

Algum jogador em Setúbal com quem tenha feito maior amizade?
Na altura tinha dois colegas, o Frechaut e o Mário Loja, que já conhecia da seleção de sub-21, por isso foi mais fácil a entrada no balneário. Também acabei por ter boa relação com o Hélio, que era o capitão da nossa equipa.

Em ação pelo FC Porto

Em ação pelo FC Porto

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A seguir vai para Alverca. Porquê o Alverca?
Quando chegou o final da época no V. Setúbal, não entrei logo no FC Porto e a opção que tenho é o Alverca com o Jesualdo Ferreira que já me conhecia da seleção de sub-21, onde tinha sido meu treinador. É dos melhores treinadores para te corrigir em termos de posicionamento de um defesa. Ou seja, aquela história de não ires com os pés paralelos, de estar sempre pronto para recuar... É um professor e é um professor que corrige perfeitamente um defesa no seu posicionamento.

Também fica sozinho em Alverca?
Quando fui viver para Setúbal, a minha mulher (na altura namorada), todos os fins de semana ia visitar-me. Em Alverca, como é o segundo que estou fora, não sabia quando ia regressar ao Porto e como a minha vida podia ser aquela, de andar de um lado para o outro, começámos a viver juntos.

Correu-lhe bem esse ano?
Muito bem. Quando estás emprestado por um clube grande, o mais importante é jogares e evoluir, porque o meu objetivo era um dia mais tarde jogar no FC Porto, era esse o meu foco. E, sinceramente, fez-me muito bem. O clube fez uma boa campanha, na altura o presidente era o Luís Filipe Vieira, foi o ano também em que o Mantorras "explodiu" e fizemos uma boa campanha. Penso que terminamos em 10º lugar, o que para o Alverca foi muito bom.

Essa sua obsessão em ser cada vez melhor levava-o a trabalhar em casa? Ou seja, via muitos jogos em casa?
Não, era focado, queria treinar, queria jogar, mas fora isso tinha a minha vida privada, tinha a minha namorada e gostava de passear com ela. Lembro-me que íamos muitas vezes para a Expo passear, para o shopping Vasco da Gama também, ao cinema, saía sempre do Alverca para passear.

Volta ao Porto. Quem lhe diz que vai permanecer no FC Porto?
A minha expectativa de voltar e ficar era grande, mas estava preparado se a opção fosse andar mais um ano a rodar. Sentia-me feliz a jogar. Dizem que vou fazer a pré-época no FC Porto. E foi por fases. Fiz a pré-época e depois o treinador optou por ficar comigo.

Era Octávio Machado?
Sim. Foi uma luta. Quando ficam quatro, cinco centrais, tens de lutar diariamente para conseguires lugar.

Mas o Octávio aposta em si.
Sim e estou-lhe muito grato porque é das primeiras pessoas a apostar em mim. Na altura era eu e o Jorge Andrade, porque tivemos o problema da braçadeira com o Jorge Costa.

Ricardo numa das primeiras chamadas à seleção A

Ricardo numa das primeiras chamadas à seleção A

Ana Baião

Tinha acabado de chegar definitivamente ao FC Porto, como é que assistiu a esse episódio? Ficou de boca aberta, no seu cantinho, sem dizer nada?
Sim, eu não falava. [risos] O Jorge Costa sempre foi um exemplo para todos. Enervou-se, porque foi muito próximo do intervalo, recordo-me como se fosse hoje, num jogo contra o Vitória de Setúbal e acho que se precipitou com a situação de sair. Ele no fundo sempre fez tudo para ajudar o clube e queria estar em campo, isso acontece. Entretanto, entre o treinador e o Jorge Costa as coisas não correram bem, o Jorge Costa decidiu sair porque eram incompatíveis e fiquei eu e o Jorge Andrade a jogar. Depois o Octávio é mandado embora, em janeiro, e entra o José Mourinho.

Entretanto sofreu uma lesão.
Exatamente, no penúltimo jogo do Octávio contra o Sporting. Foi uma entrada do Pedro Barbosa. Ele meteu a bola na frente, eu ganhei a bola, passo a bola, penso que para o Vítor Baía, e ele entra fora de tempo e deu-me no pé. Fiquei com uma inflamação enorme. Dois meses e meio parado.

Quando fez o primeiro treino com o Mourinho notou logo que era diferente dos outros?
Sim, notava-se que estava à frente dos outros, sem dúvida. Na questão do treino, da preparação, dos pequenos detalhes, dos joguinhos, de passar de um treino para outro logo de seguida, sem grandes pausas, o ritmo era diferente, não era um treino parado, era um treino que tinha sempre algum conteúdo e ele era forte também a comandar o treino. Chegávamos ao final e via-se que toda a gente estava encantada com a sessão.

Começa a jogar com ele mas não se afirma logo nessa época, pois não?
Não, estava bastante limitado porque já estava há muito tempo parado, comecei a treinar mas não estou a 100%, doía-me tocar na bola.

E regressa Jorge Costa. Temeu perder lugar na equipa?
Não, porque o Jorge Andrade é vendido para o Deportivo da Corunha. Entretanto contratam também o Pedro Emanuel. Ficou Jorge Costa, Pedro Emanuel, eu e depois o Ricardo Costa, se não me engano. Eu sentia que naquele momento tinha de dar tudo para conseguir o meu objetivo, que era jogar no FC Porto. A minha luta tinha que ser aquela e mostrar que tinha valor para jogar no FC Porto.

Quando sente que já tinha agarrado o lugar?
A meio da época, jogamos contra o Panathinaikos, perdemos 1-0 em casa e eu não joguei. Depois fomos jogar fora, joguei, e ganhámos 2-0. A seguir veio a Lazio naquele célebre jogo em que ganhámos 4-1. Penso que o avançado era o argentino Claudio López, muito rápido, eu jogo e as coisas correram-me bem.

E passa a ser titular indiscutível.
Quase sempre, sim. Porque tinha uma vantagem em relação ao Pedro e ao Jorge Costa, era mais rápido; e contra adversários ou contra jogadores que eram rápidos, por norma o mister Mourinho colocava-me a mim.

Ricardo Carvalho, Cristiano Ronaldo e Pauleta durante o Euro2004

Ricardo Carvalho, Cristiano Ronaldo e Pauleta durante o Euro2004

Era rápido, mas consta que custava-lhe a arrancar, entrava sempre meio “adormecido” no jogo, de tal maneira que o Jorge Costa até lhe pôs a alcunha de “Sono".
[Risos] Sim. Era por ser muito reservado, estava sempre no meu canto e ao princípio entrava em campo um pouco mais relaxado do que devia. Para mim foi importante jogar ao lado do Jorge Costa pela pessoa que é e pelo líder que era em campo. Eu tinha características muito diferentes das dele e ele completava as características que me faltavam nessa altura. Fui crescendo e evoluindo nesse aspeto de liderança. Ao princípio, não falava, falava pouquíssimo, queria estar atento e concentrado, mas depois comecei a perceber que era importante liderar os colegas porque atrás tu vês quase tudo. Era importante falar. E fui aprendendo isso com o Jorge Costa.

O Mourinho também lhe "dava nas orelhas"?
Ele chamava a atenção no momento certo e é daqueles treinadores que também quer ouvir o que tu pensas, mas claro, quando achava que eu podia dar mais, exigia sempre.

Como é que reagia? Refilava?
[Risos] Não, só se fosse demasiado, mas normalmente ouvia, calava e pronto. Depois, há coisas que são próprias, que são minhas, tinha de as fazer, como o sair a jogar, para me sentir bem no campo. Mesmo que o treinador me dissesse que não deveria arriscar tanto, para me sentir bem teria de o fazer durante o jogo. Eram coisas muito minhas. Mas sim houve alturas em que o Mourinho me chamou à atenção e berrava bastante porque exigia mais de mim ou porque o risco que por vezes corria não se justificava, era mais por aí.

2002/03 é uma época de glória. O que o marcou mais?
Os grandes jogos que fizemos. Como crescemos também. Lazio em casa quando ganhámos 4-1, a final da Taça UEFA em Sevilha, quando ganhámos 3-2, foi um jogo de loucos 1-1, 2-1, 2-2, 3-2 no prolongamento, uma festa enorme, um calor enorme em Sevilha, e o crescer da equipa desde que começámos a ganhar, o acreditar que éramos capazes de ganhar.

Quando chegaram àquela final, tinham o feeling de que iam ganhar?
Sabíamos que era muito difícil qualquer equipa jogar contra nós, porque éramos uma equipa que defendia bem, conhecíamo-nos bem uns aos outros, éramos compactos e também tínhamos qualidade para fazer dano ao adversário. O princípio foi sempre esse.

Lembra-se das palavras do Mourinho antes do jogo?
Estive tantos anos com o Mourinho que as palavras de que me lembro mais, quando chegamos a estes momentos são: as finais é para ganhar, não interessa se jogas bem ou mal. Temos o privilégio de estar numa final e temos que aproveitá-la porque não sabemos se vamos estar cá no próximo ano ou daqui a dez anos a jogar outra final, por isso tem que ser esta e ganhá-la.

Ricardo, o segundo atrás à direita, a final do Euro2004

Ricardo, o segundo atrás à direita, a final do Euro2004

Dos festejos dessa Taça UEFA e dos parabéns que se dão, o que mais lhe ficou na memória? O que mais o emocionou?
Não sei. Recordo-me que no final do jogo toda a gente estava super contente e o Mourinho chega ao pé de mim e diz que aquele foi o melhor jogo da minha carreira, que foi como se tivesse feito três ou quatro golos, que não tinha sido o caso. Sentes que o teu treinador está a valorizar-te e a reconhecer o teu valor, isso marca, foi mais isso. De resto foi uma festa com os pais, a mulher.

Na terceira época com o Mourinho, ganhou a Liga dos Campeões, a Liga, a Supertaça, foi uma época brilhante. Foi muito diferente da anterior? Foi uma época mais tranquila?
Foi uma época que veio provar que a Liga Europa/Taça UEFA não foi por acaso. Por vezes há equipas que ganham uma competição europeia e a seguir nem passam a primeira fase da Liga dos Campeões e nós viemos provar que aquela equipa não ganhou a Liga Europa por acaso. Foi o continuar do trabalho feito.

Mas sentiam-se mais tranquilos enquanto grupo, enquanto equipa?
Quando ganhas é diferente a confiança, a confiança em ti próprio e nos teus colegas é sempre maior.

Ricardo Carvalho chega ao Chelsea em 2004/05

Ricardo Carvalho chega ao Chelsea em 2004/05

Histórias caricatas que tenha vivido no FC Porto? Não tem nenhuma?
Acho que sou das piores pessoas para contar histórias, ainda por cima das de balneário [risos]. Sempre fui uma pessoa mais reservada, queria fazer o meu trabalho e depois viver a minha vida. Nunca fui muito sociável com os meus colegas, sempre fui muito mais reservado. Comecei a melhorar com os anos, foi importante ter ido para o Chelsea e crescer como pessoa, mas na altura pouco falava.

Mas vocês faziam muitos almoços de grupo não faziam?
Havia muitos almoços e almoços prolongados que eu não gostava nada [risos]. Era pior do que estar a correr duas horas seguidas à volta do campo. Eu não queria ser o primeiro a sair, mas mal o primeiro ou o segundo saia, eu saia logo a seguir [risos].

E também tinha de beber o seu copinho de vinho para não ouvir do Jorge Costa?
[Risos] Não faziam questão, mas fazia que bebia só para não me chatearem [risos]. Depois aprende-se a gostar. Na altura nem ligava e hoje já bebo um copinho de vinho, é diferente, é a evolução das pessoas. Mas sempre fui uma pessoa mais discreta.

Eles não se metiam consigo por ser assim tão introvertido?
Eu não respondia e eles deviam achar que nem tinha graça meterem-se comigo porque eu não colaborava muito [risos]. Havia outros com quem gostavam mais de se meter porque havia mais reações e havia mais palhaçada, eu sempre tentei passar um pouco ao lado nesse aspeto.

Marcou-o mais ganhar a Liga dos Campeões ou a Taça UEFA?
Ganhar a Liga dos Campeões porque era o concretizar de um sonho. A verdade é que na final acabámos por tornar o jogo mais fácil do que normalmente seria, porque na 2ª parte, a partir do 2-0, sentimos que a taça era nossa. A final da taça UEFA tenha sido mais dramática. Mas não queria sofrer tanto para ganhar uma Liga dos Campeões. Depois houve outras finais que também foram dramáticas, em que o final não foi tão feliz.

Qual a que lhe custou mais perder?
No Chelsea, em 2008, quando perdemos a final em penáltis. Chegámos ao quinto pénalti e o John Terry escorrega e acaba por falhar, mas se marcássemos aí tínhamos ganho a Liga dos Campeões. Mas a que doeu mais, verdadeiramente, para mim, foi a final do Europeu em 2004. Se não tivesse ganho em 2016, ia ser uma coisa que ia faltar na minha carreira, ganhar algum título pelo meu país.

Dos três títulos nacionais que conquistou no FC Porto, qual o que lhe soube melhor?
Claro que a época de 2003/2004 foi importante, porque foi a época em que realmente me impus no clube, mas todos são títulos. Tenho um título de pentacampeão em que não joguei, mas são coisas a que dou valor. Apesar de não ter jogado, participei, estava no grupo e sinto que fui pentacampeão. Claro que quando jogas e quando te assumes como um dos pilares da tua equipa, mais valor dás.

Ricardo com a taça da Premier League, que conquistou por três vezes o Chelsea

Ricardo com a taça da Premier League, que conquistou por três vezes o Chelsea

D.R.

Entretanto o Mourinho vai para o Chelsea. Quando sabe que também vai?
Só durante as férias. Antes de acabar o campeonato há uma especulação grande de que o Mourinho podia sair, o Mourinho comenta com alguns jogadores que se calhar um dia mais tarde ainda iríamos trabalhar juntos. Nunca me iludi muito, porque o que ele me disse a mim, disse a três ou quatro jogadores e só foram dois. Eu fui um dos privilegiados em sair, acho que naquela altura foi importante para mim.

Mas quando lhe falou dessa possibilidade, o Ricardo disse logo sim ou ficou a ponderar?
Era uma possibilidade e eu fiquei a olhar para ela com um sorriso, mas era uma possibilidade. Mas mais do que isso, do que ir um dia mais tarde trabalhar com ele no estrangeiro, é mais importante o reconhecimento dele perante mim, pela minha qualidade, pelo meu trabalho.

Ficou orgulhoso por “obrigar” Abramovich a abrir os cordões à bolsa para o contratar?
Estava numa fase alta e não pensei muito no valor. O valor foi bastante elevado, mas tinha jogado a Liga dos Campeões, a final do Campeonato da Europa, o Real Madrid tinha comprado um central por 25 milhões, o Samuel, o presidente do FC Porto não me queria vender e pediu o valor que achava que devia pedir.

Como foi o primeiro embate com a equipa do Chelsea?
Eu só vou mais tarde porque o acordo é feito em agosto, já a equipa do Chelsea estava nos EUA a fazer a pré época. Eu junto-me aos meus colegas e duas semanas depois temos o primeiro jogo. Como me juntei tarde, não fiz o primeiro jogo.

E o impacto quando chega a Inglaterra, o ter de falar uma língua diferente, tratar de arranjar casa, a adaptação aos ingleses, como foi?
Foi difícil, mas tinha a minha mulher que me ajudava também. O meu inglês era pobre, mas tínhamos tradutor. O clube também ajudou nas questões da casa, havia uma pessoa que tratava dessas coisas.

No Chelsea abraçado a José Mourinho

No Chelsea abraçado a José Mourinho

Laurence Griffiths

Como era o balneário, muito diferente do FC Porto e daquilo a que estava habituado?
Sim. Chegou muita gente nova no mesmo ano, o Drogba, o Petr Cech, Robben, eu, o Paulo Ferreira, muita gente. O Mourinho era e é um treinador muito exigente. E começámos a crescer como equipa. Mas era diferente, era um grupo de trabalho, não havia almoços, ganhávamos e não havia almoços. Cada um ia à sua vida. Queriam que chegasses ao treino, fizesses o teu trabalho e estavam sempre preparados para trabalhar. O Mourinho pedia para dar 10 voltas ao campo, nós lá estávamos e dávamos, sem reclamar.

Como foi fazer dupla com o John Terry? Muito diferente do Jorge Costa?
A liderança e o físico parecidos, o mesmo tipo de carácter, grandes líderes, grandes capitães. Quando joguei com o Jorge Costa ele já estava na fase maior da carreira dele, já tinha 32 anos anos, penso eu, apesar de ser sempre o líder da nossa equipa. O John Terry ainda era novo, é mais novo do que eu, mas tinha estas características todas do Jorge Costa, sendo mais novo. Portanto, para mim foi importante jogar com jogadores como o Jorge Costa e o John Terry.

O Ricardo assumiu-se como "patrão" da defesa?
Eu queria era fazer o meu e bem feito [risos]. O Terry já estava lá, tinha crescido em Inglaterra com as características próprias do futebol inglês, estava muito mais adaptado ao futebol inglês do que eu e na defesa só ele é que era o líder.

Notou muita diferença no estilo do futebol?
Sim, muito mais direto, muito mais rápido. Para mim, como era inteligente a ler o jogo, não tive grandes dificuldades. Pensei que ia ter mais dificuldades, pelo aspeto físico, porque eu nunca fui um central fisicamente muito forte e grande, mas era rápido, ágil e inteligente a jogar e não tive dificuldades em adaptar-me ao futebol inglês.

Logo no primeiro ano ganham a Premier League. Foi a loucura?
Ganhar depois do clube estar 50 anos sem ganhar, imagine como foi. Foi uma festa enorme e os adeptos ainda hoje falam nessa equipa. A partir daí penso que o clube começou a crescer cada vez mais.

Os adeptos do Chelsea são muito diferentes dos adeptos do Porto?
Sim, o estádio sempre cheio, sempre a apoiar a equipa, exigem bastante durante o jogo, mas depois do jogo tens uma vida mais tranquila do que em Portugal, do que no Porto, neste caso.

Alguma vez foi confrontado por algum adepto no Porto?
Graças a Deus não. Como cresci na formação do Porto, os adeptos gostam dos jogadores que tenham crescido na formação. Mesmo nas alturas menos boas, nunca tive problemas com adeptos.

Ricardo e John Terry, com quem fez dupla na defesa do Chelsea

Ricardo e John Terry, com quem fez dupla na defesa do Chelsea

PAUL ELLIS

Esteve seis épocas no Chelsea. Dos três anos e meio com o Mourinho, quais foram os momentos mais importantes para si?
Para mim o último ano antes do Mourinho sair, penso que é a época 2006/2007, a terceira época, penso que foi a mais importante, porque foi a época em que senti que ele me reconheceu mais como grande jogador. Cresci muito nos primeiros dois anos, evoluí bastante e estava super adaptado, a equipa já olhava para mim também como um dos líderes da defesa, se eu faltasse já não era a mesma coisa.

Aí já estava completamente adaptado à vida de Londres e tinha sido pai.
Sim, em 2005 nasceu o meu primeiro filho, o Rodrigo.

Assistiu ao parto?
Assisti. Tenho três filhos e o primeiro foi mais fácil de assistir porque não sabes o que é que vai acontecer. O segundo e o terceiro já foi mais duro, mais difícil. Mas no primeiro, tudo é uma novidade, estás ali sempre na expectativa e correu bem.

Quando lhe puseram o filho nos braços, qual foi a sensação?
Impressionante. Tão pequeno e tão perfeito, olhas para eles, são os dedinhos, a boca, é uma sensação... Acho que é das melhores sensações do mundo. Ser pai é das melhores coisas que tenho na vida, é uma sensação única e as coisas mudam.

A saída de Mourinho em 2008 foi um grande choque?
Foi uma grande surpresa. Nos primeiros dois anos tínhamos ganho o campeonato, no terceiro duas taças. Apesar de não termos começado bem a época, foi uma grande surpresa ele ter saído tão cedo.

Ele disse-lhe alguma coisa do género "assim que for possível, chamo-te"?
Não. Foi de repente, de um dia para o outro. Nós chegámos ao treino no dia seguinte e a decisão já estava tomada, ele só foi despedir-se um a um ao balneário. Foi um choque porque estávamos todos apegados e tínhamos construído uma equipa forte, chegamos todos ao mesmo tempo. Com ele chegaram seis ou sete jogadores e crescemos todos como equipa. Não me recordo se me disse alguma coisa em concreto, recordo que me deu um abraço e provavelmente deve ter dito "até breve".

Avram Grant assume o comando. Um estilo muito diferente de Mourinho?
Sim, ele estava lá como diretor desportivo. Com ele chegou também o holandês Henk ten Cate, que tinha estado com o Rijkaard, em Barcelona. Basicamente era o ten Cate que dava o treino e o Grant observava mais e falava quando achava que devia interromper o treino.

Essa foi uma época do “quase”, porque ficaram em 2º lugar na Premier League, em 2º na Taça, foram à final da Liga dos Campeões e perderam.
O 2º lugar diz pouco, a verdade é que foi uma época bem conseguida, porque melhoramos e conseguimos chegar à final da Liga dos Campeões e quase vencê-la. Foi pena perdermos em penáltis depois de estarmos em vantagem.

Como é a ressaca de não ganhar nada depois de tantos anos a vencer quase tudo?
É duro. Quando se perde não se consegue viver da mesma maneira. E quando se perde uma Liga dos Campeões como eu a perdi, ficas ali durante uns tempos a pensar como é que foi possível, depois de estarmos tão próximos. Tento não passar isso para dentro de casa, porque tenho de libertar-me um pouco do futebol e por isso tenho as minhas rotinas com a minha mulher, gosto de passear com ela, tomar um café, um chá. Posso desabafar um pouco com a mulher, o que é o normal, mas depois tento levar uma vida tranquila com ela e com os filhos. Isso ajudava a esquecer um pouco as derrotas.

Ricardo defrontou Cristiano Ronaldo quando ambos jogavam em Inglaterra

Ricardo defrontou Cristiano Ronaldo quando ambos jogavam em Inglaterra

Na época seguinte tem dois treinadores, Scolari e Guus Hiddink. O Scolari no Chelsea era diferente daquele que conhecia da seleção?
Claro que trabalhar na seleção é completamente diferente de trabalhar num clube. Na seleção concentras-te, tens um plano de uma semana, 10 dias e depois vais embora. Num clube trabalhas diariamente durante meses e meses. Os treinos não eram muito diferentes, era o mesmo Scolari que conhecia na seleção.

Dá a sensação que Scolari não conseguiu adaptar-se...
Não foi uma questão de adaptação, acho que é importante primeiro do que tudo controlar bem a língua, saberes falar bem inglês para te exprimires porque para seres treinador tens de passar as mensagens fortes e precisas. E nesse ponto era um pouco difícil para o Scolari. Depois, as coisas desde o princípio não correram bem, a equipa ressentiu-se e acabou por ser o treinador a sair.

Gostou do Hiddink?
Treinos bons também, mas esse foi o meu pior ano, porque tive vários problemas físicos. Tive três ou quatro lesões musculares.

A que atribui essas lesões? Por ter ido um bocado abaixo psicologicamente e isso refletiu-se no físico ou teve a ver com os treinos que eram diferentes?
Não sei. Por vezes quando se mudam os métodos... No fundo estava muito habituado aos treinos do Mourinho, com Rui Faria. Mas não sei. A minha primeira lesão é muscular, que pode acontecer, e o problema é que eu ainda não estou completamente recuperado e o mister Scolari pediu-me para ir para o banco. Entretanto o central, o Alex, lesionou-se na 1ª parte e eu tive de entrar. Tive uma recaída e acabei por me lesionar novamente e estive mais um mês e meio sem jogar. Foi uma sucessão de pequenos erros e acaba-se por pagar caro. Acabei por jogar menos jogos esse ano porque nunca voltei a estar 100% fisicamente.

A seguir entra Ancelotti. O que recorda dessa temporada?
Começámos logo bem, ganhámos a Taça. Comecei a jogar, não tive problemas de lesões e acabámos por ganhar a Premier League, é um grande treinador e sabe gerir muito bem as relações entre jogadores, sabe gerir um balneário.

A propósito de balneários, tendo em conta que passou por grandes equipas, qual foi aquele onde sentiu que os egos eram maiores?
O do Real Madrid. Tem a ver com a cultura de Espanha e a grandeza do clube. Aí os egos são mais fortes e é mais difícil de gerir [risos]. Os primeiros dois anos com Mourinho no Real Madrid correram bem, ganhámos a Taça do Rei contra o Barcelona e ganhámos o campeonato no ano seguinte. Mas a verdade é que recordamos muito do último ano de Mourinho, em que tivemos problemas no grupo e não ganhámos.

Com a mulher Carinha e os dois filhos mais velhos, Rodrigo e Raquel, junto de mais uma taça da Premier League

Com a mulher Carinha e os dois filhos mais velhos, Rodrigo e Raquel, junto de mais uma taça da Premier League

D.R.

Como se dá a ida para o Real Madrid? Foi Mourinho quem o contactou? Quando sabe que vai para Madrid?
O Mourinho tinha assinado com o Real Madrid e eu tinha mais dois anos com o Chelsea. Entretanto, o Jorge Mendes disse-me que havia possibilidade de eu ir para o Real Madrid. Sempre foi um sonho jogar no Real Madrid, desde que estava no FC Porto, porque o primeiro clube que esteve interessado em mim quando estava jogar o Euro 2004 foi o Real Madrid de Florentino Pérez. Por isso sempre tive o sonho de lá jogar.

E podendo fazê-lo com Mourinho, ainda melhor.
Sim, quando o Mourinho assina e o Jorge diz-me que há possibilidade de ir, falámos com um diretor do Chelsea e eu disse-lhe que para mim era importante experimentar outra liga. E o Chelsea proporcionou-me este meu sonho.

Muda-se para Madrid com a família, já com mais um filho, a Raquel, certo?
Sim. Eu mudo-me para Madrid em agosto de 2010 e a Raquel nasceu em 2007, ainda estava em Inglaterra. Mas os meus filhos nasceram todos no Porto.

Como foi o primeiro impacto em Espanha, sobretudo com os espanhóis?
Eu estava mais concentrado do que nunca porque sabia que tinha uma grande responsabilidade em fazer bem. Quando cheguei a Madrid já chego um pouco maior e mais velho, 32 anos, alguma especulação porque já não estava no meu auge, então eu queria mostrar a toda a gente que ainda era capaz de jogar num dos melhores clubes do mundo. Acho que não desfrutei tanto na altura de assinar pelo Real Madrid porque o sentido de responsabilidade era muito grande.

A adaptação da família a Espanha e a Madrid foi fácil?
Sim, foi mais fácil. Até para mim, quando saí de Portugal, do FC Porto, teria sido mais fácil a minha adaptação ao futebol espanhol do que ao inglês, pela minha maneira de jogar. Foi muito importante passar pela Premier League e mostrar que eu era capaz de jogar numa liga tão forte fisicamente, mas a liga espanhola é mais parecida à nossa liga portuguesa. Portanto, a adaptação ao futebol espanhol foi fácil.

Depois do Euro2004 Ricardo jogou também o Mundial de 2006 e o Europeu de 2008

Depois do Euro2004 Ricardo jogou também o Mundial de 2006 e o Europeu de 2008

De todas as duplas que fez como central, com quem se entendia melhor, até de olhos fechados?
Com quem joguei mais no FC Porto foi com Jorge Costa e foi com quem cresci bastante porque era jovem e um pouco imaturo. O John Terry foi com quem joguei mais vezes, passei seis anos ao lado dele e é daqueles jogadores com quem consegues jogar um pouco de olhos fechados. Se tiver de eleger um jogador com quem me dei melhor se calhar foi o com o Terry. Acho que nos completávamos bem um ao outro. Com o Pepe joguei mais no primeiro ano do Real Madrid; no segundo ano acabo por me lesionar e começo a perder o lugar, joguei menos tempo. Mas joguei na seleção com ele e as coisas correram bem porque ele tem uma qualidade incrível, é super rápido, sabe ler o jogo como eu sei, éramos mais parecidos. Mas para mim foi importante jogar ao lado de Terry e do Jorge Costa.

O último ano no Real Madrid foi o mais complicado a nível de balneário porquê?
Em clubes grandes quando não se ganha é sempre difícil lidar. Viver com Mourinho quando não ganha também é difícil [risos]. Ele não sabe viver com derrotas. Então o dia-a-dia foi um bocado difícil, mas é normal. Estamos no futebol para ganhar.

Teve algum problema de balneário?
Não. Eu já estou nessa altura com 34, 35 anos. Acabo contrato com o Real Madrid aos 35. E nesse ano já pouco joguei, fiz 18 jogos. Já não era titular indiscutível. Queria era trabalhar e estar bem. Já que não jogava tanto, trabalhava para mim mesmo, para ser capaz de continuar a jogar ao mais alto nível no ano seguinte.

Não lhe passava pela cabeça ainda pendurar as chuteiras? Ou sentiu esse friozinho na barriga?
Achei que podia jogar mais um ano. Chegas a uma idade em que começas a pensar ano a ano. E foi isso. Pensei, daqui, do Real Madrid, vou jogar mais um ano e ver como corre. Não pensei que poderia jogar quase até aos 40 anos. Entretanto, fui para o Mónaco e assinei um ano. Como as coisas correram bem, assinei outro.

Ricardo ouviu o Real Madrid chamar por si definitivamente em 2010

Ricardo ouviu o Real Madrid chamar por si definitivamente em 2010

Como foi no Mónaco? É um mundo à parte?
A verdade é quer tive outras opções, como ir para o Qatar e Dubai, mas quando o Jorge me disse que era possível ir para o Mónaco, que tinha acabado de subir da II para I divisão, eu disse que conseguia jogar em alto nível e que preferia arriscar ir para o Mónaco.

Mas passou-lhe pela cabeça regressar ao FC Porto, não passou?
Naquela altura o FC Porto estava bem servido de centrais, o Jorge não me falou do FC Porto, mas em clubes do Qatar, Dubai e Emirados, e depois no Mónaco. Não me falou em regressar a Portugal. O FC Porto tinha Otamendi, Mangala, Rolando ainda, estava bem servido. Não tive oportunidade nessa altura em que acabei contrato com o Real Madrid, que para mim era a altura certa se calhar para ter voltado ao FC Porto. Mas com 35 anos...

Como foi a adaptação da família ao principado?
Boa. Cidade pequena, bonita, segura, e claro, o luxo que tem o Mónaco. Mas a adaptação é sempre mais fácil quando as coisas desportivamente correm bem e foi o que aconteceu. Apesar da idade joguei sempre, joguei bem. Assino um ano, renovo mais um ano, e acabei por estar três anos com a família, no Mónaco. A família gostou. Os miúdos sentiam-se bem, seguros.

Cruzou-se alguma vez com estrelas de cinema ou outros grandes jogadores?
Sim, com jogadores de ténis, com pilotos de F1 também. Mas os meus filhos não ligavam. A verdade é que já em Madrid cruzámo-nos muitas vezes com o Cristiano porque eu também vivia em La Finca, e eles não ligavam nenhuma. E era o Cristiano Ronaldo [risos]. Eram muito pequenos. Se calhar hoje têm mais noção se nos cruzamos com pessoas mais conhecidas.

Gostou do Ranieri?
Muito. Tinha subido o Mónaco para a I divisão, depois tínhamos conseguido o objetivo do acesso à liga dos Campeões com o 2º lugar e foi uma pena dispensá-lo. Ele ainda tinha mais um ano de contrato. Foi uma pessoa que me ajudou bastante também no meu 1º ano no Mónaco e acreditou sempre em mim. Teria ficado feliz se tivesse continuado.

Mas entretanto chega Leonardo Jardim. Que tal?
O Leonardo vem do Sporting. Novas ideias, o que é normal. Ao princípio as coisas não começaram tão bem, mas com o tempo... É um treinador que também gere bem o balneário e conseguiu ter sucesso. Acabou por fazer um grande trabalho no Mónaco e toda a gente reconhece o valor que tem.

Em ação pelo Real Madrid

Em ação pelo Real Madrid

Durante o seu percurso foi apanhando sempre muitos portugueses nas equipas. Encontravam-se muito fora dos treinos ou cada um fazia a sua vida?
Cada um tem a sua vida, depois depende muito também da relação da nossa mulher com as mulheres dos outros portugueses. Lembro-me que, por exemplo, no Mónaco dava-me bem com o João Moutinho. As nossas mulheres dão-se bem também até hoje. Em Madrid, convivia bastante com o Kaká. Com o Cristiano, cruzámo-nos, falávamos, mas nunca fomos de ir a casa um do outro. Em Inglaterra tinha o Paulo Ferreira e o Tiago e com esses dois sim, convivemos bastante. Com o Tiago, principalmente. Ainda hoje estamos sempre em contacto e falamos bastante. Foi uma relação que cresceu bastante desde o tempo em que chegamos ao Chelsea, em 2004/05. Apesar de ele só ter estado lá um ano, começámos a criar uma amizade grande, que continuamos na seleção.

Quando chega ao final da sua terceira época no Mónaco, o que aconteceu?
Temos o Europeu 2016. Eu faço a época como titular e vou para a seleção. Estava tão focado na seleção que acabei contrato com o Mónaco, mas só queria que as coisas me corressem bem na seleção e não estava preocupado se ia continuar no Mónaco ou não.

Ricardo ruma ao Monaco em 2013/14

Ricardo ruma ao Monaco em 2013/14

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É campeão europeu. E depois?
Na altura senti-me tão realizado que ponderei acabar a carreira, sinceramente. Mas entretanto continuou a haver interesse de outros clubes. O Mónaco falou comigo para me dizer que não iria ficar como jogador, mas que tinha a porta aberta para eu desempenhar outras funções. Quando falo com o Jorge Mendes, ele diz-me que há alguns clubes interessados e fico a ponderar. Não tinha decidido. E depois surge a etapa da China.

O que o fez ir para lá?
O meu percurso na Europa tinha sido tão bom, tinha jogado em clubes tão grandes, sentia-me tão realizado, porque não uma aventura, neste caso na China, ainda por cima com um treinador que conheço e vi crescer na equipa técnica do Mourinho. Acho que foi importante para mim e para minha família ver outra realidade, um mundo diferente.

O que mais vos impressionou?
Esperas tudo e mais alguma coisa, mas quando chegas a Xangai, a cidade é espectacular e acabei por gostar muito de viver lá. É um caos de trânsito, uma cidade enorme, mas onde há tudo. Tens escolas espectaculares, foi das melhores escolas que os meus filhos frequentaram, a Wellington School. Só tenho coisas a dizer bem da China.

E dos chineses?
São educados. Quando falas, ouvem-te, tentam aprender contigo. Nesse aspecto foi gratificante, porque eu não jogava tanto devido à regra de só poderem jogar três estrangeiros, e na minha equipa tínhamos o Hulk, o Óscar, brasileiro, o Odil... Eu pouco jogava mas podia desempenhar outras funções, como ajudar os defesas a posicionar-se. Eles estavam ali para aprender e queriam aprender. Respeitavam-me muito e sentia que estava a ajudar. É uma fase muito diferente da minha vida.

Aproveitou para visitar e conhecer a China?
Sinceramente pouca coisa. Não conduzia, tínhamos de ter condutor. Aproveitava para conhecer novos restaurantes. E depois era a vida normal de ir buscar os miúdos à escola e estar com eles e no outro dia, treino. Os miúdos estavam todos motivados para aprender o mandarim ao início, mas depois foi-lhes difícil. Nem à muralha da China fui.

Quando acaba esse ano é aí que diz: “Acabou. Não quero mais”?
Acontece que nesse ano da China a minha mulher engravidou. O meu filho Ricardo nasceu no fim de novembro, ou seja, no fim da época. Nesse momento, acabei contrato com o Shanghai SIPG, há possibilidade de continuar a jogar, há ofertas da Índia, mas disse que era suficiente. Naquele ano da China fui-me preparando para acabar. Já não estava a jogar com a frequência que gostava.

Ricardo Carvalho jogou três épocas no Mónaco

Ricardo Carvalho jogou três épocas no Mónaco

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De alguma forma teve pena de não terminar a carreira no FC Porto?
Na fase em que podia ter voltado, que foi depois do Real Madrid, não se proporcionou. Mas a verdade é que também fui tão feliz no FC Porto... Gostava de ter jogado mais no FC Porto, é verdade.

Já sabia o que queria fazer depois?
Não. Enquanto fui jogador sempre me concentrei em desfrutar o máximo até ao último dia. Depois, como a minha carreira foi tão longa pensei em ter uma pausa, sinceramente. Desfrutar da família, seguir a família já que eles me seguiram este tempo todo. Estive um ano em que me fui ocupando com a família e o curso de treinador que comecei a tirar.

Foi tirar o curso foi com que objetivo?
Foi o Tiago que me convidou. Ele ia começar a tirar o curso também e era uma boa tirar com ele porque damo-nos bem e podíamos falar. Era uma experiência nova para os dois. E começámos assim. A primeira ideia era mais tarde ou mais cedo voltar, por exemplo, à formação, fosse no FC Porto ou no Mónaco, porque tinha tido o convite do Mónaco para ficar no clube.

O convite do André Villas-Boas para fazer parte da equipa técnica do Marselha foi uma surpresa?
Foi, claro. Começar assim num nível tão alto como é este, com o André, foi espectacular. Ele deu-me tempo, durante o primeiro ano, para me adaptar.

Os seus filhos nunca reclamaram por mudarem muitas vezes de escola?
Eles estão habituados, a verdade é que desde que nasceram foram habituados a andar de um lado para o outro e estão sempre em colégios internacionais. Claro que agora na adolescência começam a querer um pouco mais de estabilidade, mas até agora nunca reclamaram muito. E a minha mulher também não. Ela sabe que somos gratos em ter vivido em grandes cidades. Claro que temos saudades do Porto e de Portugal. Um dia quero voltar. Mas também somos felizes fora.

Depois de deixar a seleção em 2011, Ricardo voltou a ser chamado por Fernando Santos

Depois de deixar a seleção em 2011, Ricardo voltou a ser chamado por Fernando Santos

Vamos falar da seleção. Começa nos sub-18, mas a primeira grande competição é o Euro 2004. Que recordações é que tem dessa seleção e como viveu esse europeu?
Primeiro que tudo era em Portugal, depois era uma grande seleção. Havia jogadores novos a aparecer, era o meu caso, do Jorge Andrade, do Cristiano e tínhamos jogadores com muita experiência de nível mundial, que já tinham dado provas em grandes clubes; o caso do Figo, do Rui Costa, Pauleta, Deco… Acho que tínhamos uma seleção muito bem conseguida e uma grande equipa. E foi o que foi.

Gostou do Scolari?
Não me chamou logo. Mas nunca perdi a esperança e sabia que mais tarde ou mais cedo ia acabar por me chamar. A vantagem do Scolari é que conseguiu reunir um grupo de jogadores que estavam com ele até ao fim. Iam à guerra por ele até ao fim. O nosso grupo era muito forte e coeso e por isso é que conseguimos chegar até à final.

E depois, aquela desilusão.
Para todos. Foi uma grande oportunidade que perdemos.

Mas aí sentiu que já tinha agarrado um lugar na seleção?
No primeiro jogo, não joguei. Jogou Fernando Couto. O Cristiano também não jogou, acho que jogou o Simão. Mas como correu mal, Scolari mudou quatro ou cinco jogadores para o segundo jogo e eu fui um deles. Como a partir daí ganhamos sempre ele manteve a estrutura. Aí sim, de uma vez por todas, começo a ser indiscutível na seleção.

Na Alemanha 2006, o que mais o marcou?
Recordo que a campanha foi muito boa e, claro, de perder contra a França mais uma vez. Foi duro para nós. Depois também não conseguimos ganhar à Alemanha para o 3º e 4º lugar. Acabamos por ter um sabor um bocadinho amargo.

Iam cientes de que ia ser difícil ou houve algum excesso de confiança porque já tinham chegado à final do Euro?
Nós sabíamos que era importante passar a 1ª fase. Iríamos por etapas. Mas tínhamos uma grande equipa e sabíamos que podíamos chegar muito longe. Primeiro que tudo o mais difícil é passar os oitavos. E os oitavos era o clique que nos podia ajudar a chegar o mais longe possível, começas a crescer como equipa e a pensar em sonhar em chegar a uma final. Passamos os oitavos, passamos os quartos e acabamos por cair nas meias contra uma grande equipa que era a França também. Mas foi um balde de água fria, claro.

Com a mulher e os filho mais velhos a beijar a taça de Campeão Europeu

Com a mulher e os filho mais velhos a beijar a taça de Campeão Europeu

D.R.

Sai Scolari, chega Carlos Queiroz. O Mundial de 2010 também foi de má memória.
Foi porque acabámos por cair logo nos oitavos contra a Espanha, que acabou por ganhar esse Mundial.

Adaptou-se bem a Carlos Queiroz?
Muito bem. É um professor. Sabe ensinar também, sabe falar com as pessoas. Muito bem, apesar de termos saído do Mundial um pouco precocemente. Um grande treinador, sem dúvida, bons métodos, bons treinos. Mas é como tudo, quando não se ganha o treinador acaba por sofrer.

A seguir, Paulo Bento assume a seleção. As coisas começam bem entre vocês?
Sim, fiz seis jogos com ele, mas acabei por não ir ao Europeu 2012. É uma coisa entre mim e ele. Acabei por me precipitar e sair mais cedo do que devia. Graças a Deus voltei mais tarde, sempre me disponibilizei em voltar à seleção, sempre trabalhei para isso, sabia que um dia iria voltar.

Voltou a ser chamado pelo Fernando Santos, dois anos antes do Europeu 2016. Foi ele quem lhe ligou?
Sim. Fui chamado logo para a 1ª convocatória.

O Europeu era o título que lhe faltava?
Sim, era a sensação que tinha, que os anos iam passando e faltava um título pelo meu país. Não seria a mesma coisa se tivesse terminado a carreira e não tivesse ganho nada por Portugal. Era uma coisa que eu sentia desde 2004. Tive aquela oportunidade e se calhar não ia ter mais e os anos passavam e não ganhava nenhum título por Portugal. Se calhar outros grandes jogadores sentem isso, porque não há nada mais gratificante do que ganhares algo pelo teu país.

Quando Fernando Santos disse no primeiro dia que só iam sair de França no último dia, qual foi a vossa reação?
Ao princípio, ficámos assim: "Vá mister, vá com calma". Se há pessoa que tem mais mérito no nosso título europeu é o Fernando Santos. Foi a primeira pessoa a acreditar que nós éramos capazes de chegar e ganhar. Depois, à medida que os jogos iam passando e íamos eliminando as equipas, começamos a pensar, realmente o mister tem razão. E isso deu-nos uma força enorme. Mas se há português que merece esse título, mais do que nós jogadores, é o Fernando Santos.

Ricardo com os filhos Rodrigo e Raquel, em Stamford Bridge, numa homenagem do Chelsea, em 2016

Ricardo com os filhos Rodrigo e Raquel, em Stamford Bridge, numa homenagem do Chelsea, em 2016

D.R.

A equipa que ganhou o Euro 2016 era melhor do que a de 2004?
Era melhor na questão do grupo, porque ninguém se importava quem é que jogava, fosse o Cristiano ou o Nani, fosse quem fosse. Jogasse quem jogasse o importante era que a equipa ganhasse. Nesse aspeto acho que éramos muito fortes. Temos de dizer que foi a melhor seleção porque ganhou um título, mas como equipa eu penso que em 2004 éramos mais fortes com Figos, Fernandos Couto, Cristianos, Rui Costa, Decos... Eu acho que éramos mais fortes. Mas tínhamos que ter ganho na final e faltou-nos isso. Agora em 2016 sem dúvida que espírito de equipa era enorme e era difícil jogar contra nós, o que era uma das nossas vantagens, porque podíamos por vezes não jogar bem, mas éramos uma equipa difícil de vencer.

É reconhecido o papel de Cristiano enquanto capitão. Nunca duvidou que ele foi o melhor capitão para a seleção?
Não. O Cristiano foi crescendo bastante nesse aspeto de líder de equipa com os anos e foi-se transformando num grande capitão.

E ele é realmente aquilo tudo que se diz dele? O primeiro a dar o exemplo?
Sim. Ele é um perfecionista. quer sempre estar no top. Mesmo hoje com a idade que tem continua no top, é a mentalidade dele. Ele não te pede uma coisa que ele não faça, portanto é um exemplo a seguir.

Ricardo Carvalho a brincar o filho mais novo, Ricardo, e três anos

Ricardo Carvalho a brincar o filho mais novo, Ricardo, e três anos

D.R.

Está no Marselha como adjunto de Villas-Boas. Já sabe como vai ser a próxima época? Qual é o seu objetivo?
Primeiro que tudo estou grato pela experiência que estou a ter. Sinto-me mais capaz hoje de ajudar o André do que há um ano. Neste momento o objectivo é tentar melhorar e evoluir no meu papel de treinador. Não tenho ambição de ser treinador principal, mas quero melhorar como segundo. Quero acompanhar também um pouco os meus filhos.

Eles estão com quantos anos?
15, 13 e 3 anos. O mais velho, o Rodrigo joga futebol nos sub-16 do Marselha. A Raquel pratica ténis.

Em que posição joga o Rodrigo?
A central ou Nº6, como trinco.

Revê-se nele?
Algumas coisas. É engraçado que ele tem alguns tiques que eu tinha, posição de mão quando está relaxado, uma cara ou outra mais esquisita, a soprar [risos].

Ele também diz que quer ser futebolista?
Sim. É o sonho dele. Apoio-o no que ele quiser ser. Ele tem um acompanhamento diferente porque eu fui viver para o Porto sozinho, e uma coisa de que me arrependo foi ter deixado a escola precocemente. Com os meus filhos isso não vai acontecer. Fazemos questão de primeiro estar a escola e depois o futebol.

E se daqui a dois ou três anos surgir um contrato e ele disser que quer largar os estudos?
Vai ser uma luta [risos]. Para já somos fortes o suficiente e colocamos a escola como prioridade. Depois logo se vê.

Ricardo, à direita, terminou a carreira de jogador na China, em 2018

Ricardo, à direita, terminou a carreira de jogador na China, em 2018

D.R.

Onde ganhou mais dinheiro?
Em Inglaterra porque estive lá mais tempo. Mas o meu melhor contrato não foi lá e também não vou dizer onde foi [risos].

Investiu onde?
Imobiliário e produtos bancários.

Qual foi a maior extravagância que fez porque sim, porque podia?
Talvez o Ferrari vermelho que comprei quando estava no Mónaco. Era aquela ilusão, via Ferraris por todo o lado [risos]. Mas ainda o tenho.

É um homem de fé?
Sim. Vou à igreja quando posso. Às vezes vou à igreja sozinho e rezo. Gosto de rezar. Rezo no quarto, por vezes. Sou uma pessoa de fé.

E superstições?
Benzer-me antes de entrar no campo. Rezar antes de ir para um jogo. Por vezes os meus colegas iam a ouvir música e eu ia a rezar. Não era superstição mas porque me sentia bem, sentia conforto, pedia ajuda, que as coisas me corressem bem e não me magoasse, aquelas coisas.

Tem algum hobby?
Gosto muito de passear. Passear à frente da praia, tomar café.

Playstation? Nada disso?
[Risos] Sou contra quase. Tenho os meus filhos que jogam, mas eu ponho sempre limite de tempo.

Qual foi o adversário mais difícil de marcar?
Joguei contra o Cristiano e contra Messi, mas não são aqueles número nove, avançado, avançado. Penso que o avançado mais difícil de marcar talvez tenha sido o Drogba, quando o enfrentei no FC Porto-Marselha. O primeiro impacto foi marcante, ele era muito forte e explosivo.

E o guarda-redes que lhe dava mais confiança?
Acho que Petr Chech nos primeiros anos do Chelsea foi um guarda-redes incrível. Uma segurança enorme. Tive grandes guarda-redes, graças a Deus, atrás de mim [risos]. No FC Porto, o Vítor Baía e o Iker, no Real Madrid. Mas como joguei muito mais tempo com o Cech, sentia uma enorme confiança, ele conhecia bem a nossa linha defensiva. Acho que por vezes ele fazia grandes milagres, principalmente nos primeiros três anos, antes da lesão na cabeça.

Ricardo, à esquerda, tornou-se adjunto de André Villas-Boas, no Marselha, na época passada

Ricardo, à esquerda, tornou-se adjunto de André Villas-Boas, no Marselha, na época passada

Jean Catuffe

Qual é o melhor central do mundo neste momento?
O van Dijk, apesar da lesão, é o melhor.

Não vou perguntar qual o melhor treinador porque vai dizer Mourinho.
[Risos] Sim, foram oito anos e meio com ele. Apesar das nossas divergências, acho que foi o treinador que me fez evoluir mais.

Essas divergências foram o quê em concreto? Já falou nisso mais do que uma vez.
Exigências dele comigo, por achar que podia dar sempre mais e que podia ser melhor do que aquilo que naquele momento era. Respeito muito o mister Mourinho, mas quando achava que ele não estava a ser correto comigo, falava com ele e ele sempre compreendeu e falou cara a cara comigo.

Além da alcunha de “Sono” teve outras alcunhas?
Tinha várias. Em Inglaterra chamavam-me o Ricky Carvalho. No Real Madrid o Cristiano inventou outra, "Carcaça", porque já era mais velho.

Não o chamaram de “Manga” também?
Isso foi em Amarante.

“Manga” porquê?
Acho que era por não trabalhar muito nos treinos [risos].

Ricardo com a família em abril de 2020

Ricardo com a família em abril de 2020

D.R.

Quando sentiu que passou a ser mais reconhecido na rua?
Senti um impacto grande quando comecei a jogar na seleção, principalmente depois de 2004. Depois da final, onde eu ia as pessoas conhecia-me. Esse verão para passar férias, por exemplo, fui para Itália e as pessoas conheciam-me e para mim foi estranho. Em Portugal era normal porque toda a gente estava a viver a nossa seleção e eu vivia no Porto, na Foz, era normal. Mas na Itália, mais concretamente na Sardenha, não estava à espera. Depois claro, quando jogas no Chelsea é normal, mas em Londres as pessoas são muito educadas, por vezes conhecem-te mas esperam que termines de jantar ou almoçar para te abordarem. Em Madrid é sempre mais difícil porque as pessoas acham que têm o direito de vir ter contigo estejas a comer ou não [risos].

Alguma vez teve uma situação mais chata com algum fã?
Sim, quando estás com a família ou um amigo, chegam e abordam e ficam ali a falar, a falar... Mas faz parte.

De certeza que também lhe aconteceu ir a um restaurante e sair de lá sem pagar a conta.
Ah sim. Em Madrid era com frequência. Chegava ao fim, pedia a conta e diziam "está invitado, está invitado". Às vezes estava com o Tiago, que jogava no Atlético e íamos almoçar ou jantar a restaurantes que ele conhecia e no fim diziam “estão invitados” e o Tiago ficava: "Eh pá, fogo, é por seres do Real Madrid. É impressionante. A mim nunca me invitaram nem uma vez" [risos]. Era o grande Real Madrid. Em Espanha acontecia com muita frequência.